Com 24 anos de Alcoólicos Anónimos Maria deixou de beber e recuperou o riso

Estrutura nacional do grupo de autoajuda foi criada em 1994. Maria estava lá e hoje, sóbria há mais de 20 anos, ainda se mantém
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Quando foi pela primeira vez a um encontro de Alcoólicos Anónimos, Maria tinha 50 anos, vivia sozinha na margem sul do Tejo e era uma "pessoa sem sorriso". Passaram 24 anos e tudo mudou. Deixou o álcool logo depois de ter conhecido o grupo de autoajuda, sem ajuda médica, e hoje permanece como um dos elementos que semanalmente reúnem para trocar experiências e avançar na recuperação. "O que me leva a continuar, 24 anos depois de deixar de beber, é retribuir aquilo que eu recebi. Vou para ouvir pessoas que estavam tão mal como eu quando entrei e começam a recuperar."

Os 24 anos de participação de Maria nos Alcoólicos Anónimos (AA) corresponde ao período em que os vários grupos que já existiam no país se reuniram em 1994 para criarem a estrutura nacional. Foi a 19 de março desse ano e desde aí a organização assinala nesta data o Dia Nacional do Alcoólico Anónimo.

"Acompanhei tudo desde o início, com muita discussão por haver ideias variadas. Procurou-se sempre o melhor para todos. Em 1997 realizou-se a primeira conferência de serviços gerais", contou ao DN. Esta conferência reúne representantes dos 90 grupos hoje existentes no país e no próximo fim-de-semana em Fátima realiza-se a 21ª. "É uma ocasião para reunir as pessoas, avaliar trabalho e fazer uma festa também", diz Domingos Neto, o médico psiquiatra que preside aos AA e é o único não alcoólico na organização.

De 1994 até à atualidade, Maria viu algumas mudanças. "Durante anos eram sobretudo pessoas mais idosas que iam às reuniões. Hoje já aparecem pessoas mais jovens, na casa dos 30 anos. Há também mais mulheres mas ainda são menos." Domingo Neto diz que há essa perceção - os AA não registam a presença das pessoas nem ficam dados pessoais - e salienta ser importante as pessoas tratarem mais cedo o problema. "Não são os jovens estudantes que se embriagam muitos dias que são os alcoólicos. Nessa idade não há alcoólicos, é sobretudo perto dos 30 anos que se tornam doentes crónicos, quando o álcool já é uma necessidade", explica. Maria admite que vê muitas pessoas entrarem e saírem. "É muito frequente. Vão a uma reunião e depois não voltam. Há casos que regressam um ano depois e encontram sempre as portas abertas", conta.

Atualmente os AA têm uma estrutura consolidada em Portugal, com cerca de 90 grupos ativos de norte a sul e ilhas. Há grupos em inglês, francês, alemão e finlandês (no Algarve), formados por pessoas destes países que vivem em Portugal. São realizadas perto de 190 reuniões semanalmente, incluindo reuniões online que começaram por iniciativa de alguns membros de forma a permitir a pessoas que vivem em locais mais distantes dos centros urbanos ou têm dificuldade de mobilidade. "O trabalho é todo desenvolvido pelos alcoólicos. Precisam pouco de mim para as atividades regulares. Têm total autonomia financeira e nos encontros fogem a controvérsias, como formas de tratamento médico. Não se dão muitos conselhos, é mais por partilha de experiências", diz Domingos Neto, para quem é possível recuperar do alcoolismo - que não tem cura e implica abstinência total - só nos AA. Mas como médico, com 12 anos de direção de um centro de alcoologia público e carreira no privado, aponta que em muitos casos "devem ir ao médico".

O alcoolismo, aponta, "é um problema de saúde mental, com base genética, na minha opinião". Domingos Neto não deixa de ser crítico com a forma como alguns médicos encaram o alcoolismo. "Há quem considere que não há tratamento. Mas há, as terapias existem, é preciso é conhecê-las e aplicá-las." Além disso, há quem tenha preconceito sobre os AA. "Não são nenhuma seita", adverte o psiquiatra. Os AA nasceram em 1935 nos Estados Unidos, quando um corretor da Bolsa e um médico, ambos alcoólicos, criaram o grupo. "Foram os primeiros a atribuir gravidade ao problema do alcoolismo, levando que fosse depois considerado uma doença crónica."

Os grupos de AA em Portugal funcionam com anonimato e confidencialidade. "Nunca me pediram nada nem dinheiro. Há uma liberdade total para falar e ouvir os outros", resume Maria, para quem a doença não é superável de forma individual. "Isto demora muito, sozinho não se vai lá. Para nos mantermos sóbrios e resistirmos ao álcool precisamos sempre de um apoio. Encontrei o meu nos AA."

Por isso, esta mulher de 74 anos diz que a sua vida mudou. "Há 24 anos vivia sozinha, os meus filhos já eram crescidos, estava divorciada, e era alcoólica com uma negatividade permanente. Não só parei de beber, como recuperei o riso. A minha forma de estar na vida é outra. Estou diferente para melhor."

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