Há vícios bem virtuosos. A tara coleccionista, por exemplo. Graças a ela, podemos admirar hoje em Lisboa, no Centro Cultural e Científico de Macau, um assombroso acervo de objectos do ópio. Cachimbos e lamparinas, fornilhos e agulhas, contentores de estanho, caixas de marfim, escarradores hediondos, camas de chuto e relaxe, são às dezenas os artefactos que o coleccionador António Sapage reuniu pacientemente durante décadas, estando agora à disposição de quem os queira admirar e estudar. Foi o caso de Alexandrina Costa, que lhe dedicou a sua tese de mestrado na Faculdade de Letras de Lisboa, publicada numa bela e muito ilustrada edição conjunta do Centro Cultural de Macau e da Fundação Jorge Álvares. Explica-se nesse livro que a interdição mundial da "droga da primavera", como os chineses lhe chamavam, levou à destruição de muitos milhares de utensílios para o consumo de uma substância que, dizia-se, tinha propriedades afrodisíacas e até gastronómicas mas sobretudo medicinais. Nas suas Confissões de Um Opiómano Inglês, escritas em 1821, Thomas de Quincey revela ter-se iniciado no vício ópio devido às suas virtudes terapêuticas, que lhe valeram curar-se de uma terrível dor de dentes; daí ao uso recreativo foi um passo....Os objectos do ópio são hoje uma raridade. Daí o especial valor da colecção de Sapage, onde até existe um óleo de 1937 da autoria de Fausto de Sampaio que mostra um fumatório de ópio onde os viciados estavam subtilmente divididos pela classe social a que pertenciam. Há também um engenhoso suporte de cabeça feito em pau-santo e metal, de formas minimalistas, feito em finais do século XIX, princípios do XX. Com um mecanismo de dobragem que surpreende pela sua simplicidade, o objecto articulado e portátil destinava-se ao encosto e repouso das mentes inebriadas pela "fragrância negra", outro dos nomes dados na China ao narcótico extracto da Papaver somniferum..A papoila era conhecida no Império do Meio desde tempos imemoriais, mas foram os europeus - os holandeses, primeiro, os ingleses, depois - quem para lá levou o ópio em larga escala, bem como o tabaco, entretanto descoberto no Novo Mundo. Em meados do século XVI, quando Garcia de Orta escrevia o Colóquio dos Simples e Drogas, já se fumava tabaco em Guangxi, e com o passar dos séculos começa-se a fumar ópio por todas as partes sínicas, especialmente nas cidades portuárias. No século XIX, o comércio floresceu de forma avassaladora, com lucros da ordem dos 500% líquidos. Rudyard Kipling, que em 1880 percorreu as plantações e as manufacturas de ópio na zona de Patna, na Índia, descreveu na sua reportagem In an Opium Factory o gigantismo dos armazéns da papoila, as fábricas imensas onde trabalhavam centenas de homens a uma cadência alucinante. Vendo os seus súbditos entorpecidos pelos fumos da papoila, com um número inconcebível de 4 a 12 milhões de viciados no ópio, por duas vezes os imperadores da dinastia Qing tentaram proibir a entrada da droga no país. Duas guerras se travaram - sim, as Guerras do Ópio -, duas vezes Inglaterra derrotou a China. O Império entrou no que muitos chamaram "Século da Humilhação", sendo obrigado a abrir os seus portos aos navios britânicos carregadinhos de droga trazida da Índia e, de caminho, a entregar Hong Kong à pérfida Albion, um empréstimo forçado que durou 155 anos..São bem diferentes as guerras do ópio dos nossos dias. Há hoje um novo e bem mais poderoso inimigo. A Internet, claro, mãe de todos os males contemporâneos. De acordo com o Global Drug Survey de 2018, 25% da droga consumida actualmente no Reino Unido é comprada através da Internet, mais precisamente na tenebrosa Dark Web, reino das trevas onde se cruzam tráficos e crimes de toda a espécie. Na Finlândia chega-se aos 46% e na Noruega aos 30%, liderando a Alemanha o volume de negócios à escala europeia. Os países com mais hábitos de compra online ou com maior controlo policial são os que, naturalmente, registam maiores taxas de compra de estupefacientes na Dark Web (o Reino Unido, por exemplo, está coberto de câmaras de videovigilância nas ruas, o que, como é óbvio, favorece o comércio digital). Garantem os optimistas que desta forma se acaba com os traficantes de rua e que a qualidade do produto e a confiança nos vendedores são asseguradas pelas avaliações feitas por quem consome, à semelhança das pontuações que damos aos hotéis ou aos restaurantes. Encomenda-se o produto a um vendedor bem classificado, paga-se em bitcoins, recebe-se a droga ao domicílio, no conforto do lar, por correio expresso ou normal. O anonimato de quem vende e de quem compra está mutuamente garantido pela encriptação das comunicações e os consumidores têm a vantagem suplementar de, através deste comércio discreto por via postal, se conseguir esconder mais facilmente o vício da família, dos amigos, dos conhecidos. Mais ainda: nenhum traficante de rua pode competir com a variedade da oferta existente na internet - o Alphabay, líder do mercado negro da Dark Web, tem mais de 240 mil anúncios de drogas e seus derivados. E a polícia, evidentemente, enfrenta muito mais dificuldade em combater esta nova forma de tráfico, que gera já muitos e muitos milhões: o Silk Road, encerrado pelo FBI em 2013, movimentava 1,2 mil milhões de euros e o comércio digital de droga explodiu desde então..Por cá, pelo que a minha ignorância sabe, ainda não se deu grande atenção a tudo isto. Há notícias esparsas de que a PJ acompanha o assunto, pouco mais. Possivelmente, o que se passa no tráfico de droga através da Dark Web prefigura e antecipa o que seria um mundo em que o comércio de estupefacientes estivesse inteiramente liberalizado: escasso ou nenhum controlo policial, credenciação do produto por um sistema auto-regulado de pontuações, compra e venda isentas de riscos e percalços. E, no entanto, o facto é que a idade dos consumidores é cada vez mais baixa e que em países onde é maior o recurso à Dark Web as mortes por overdose têm aumentado, como sucede no Canadá ou no Reino Unido. Pode até não existir nenhuma conexão entre essas mortes e o tráfico digital, mas a coincidência dá que pensar; é agora mais fácil a um traficante anónimo, com um nome fictício, vender aos incautos produtos adulterados, quimicamente letais. O comércio de drogas pela Internet não parece ser o paraíso que alguns propagandeiam. Mas, dizem os especialistas, ainda é cedo para tirar conclusões. Seja como for, uma coisa é certa: se há vícios virtuosos, a droga não é um deles..Historiador. Escreve de acordo com a antiga ortografia.
Há vícios bem virtuosos. A tara coleccionista, por exemplo. Graças a ela, podemos admirar hoje em Lisboa, no Centro Cultural e Científico de Macau, um assombroso acervo de objectos do ópio. Cachimbos e lamparinas, fornilhos e agulhas, contentores de estanho, caixas de marfim, escarradores hediondos, camas de chuto e relaxe, são às dezenas os artefactos que o coleccionador António Sapage reuniu pacientemente durante décadas, estando agora à disposição de quem os queira admirar e estudar. Foi o caso de Alexandrina Costa, que lhe dedicou a sua tese de mestrado na Faculdade de Letras de Lisboa, publicada numa bela e muito ilustrada edição conjunta do Centro Cultural de Macau e da Fundação Jorge Álvares. Explica-se nesse livro que a interdição mundial da "droga da primavera", como os chineses lhe chamavam, levou à destruição de muitos milhares de utensílios para o consumo de uma substância que, dizia-se, tinha propriedades afrodisíacas e até gastronómicas mas sobretudo medicinais. Nas suas Confissões de Um Opiómano Inglês, escritas em 1821, Thomas de Quincey revela ter-se iniciado no vício ópio devido às suas virtudes terapêuticas, que lhe valeram curar-se de uma terrível dor de dentes; daí ao uso recreativo foi um passo....Os objectos do ópio são hoje uma raridade. Daí o especial valor da colecção de Sapage, onde até existe um óleo de 1937 da autoria de Fausto de Sampaio que mostra um fumatório de ópio onde os viciados estavam subtilmente divididos pela classe social a que pertenciam. Há também um engenhoso suporte de cabeça feito em pau-santo e metal, de formas minimalistas, feito em finais do século XIX, princípios do XX. Com um mecanismo de dobragem que surpreende pela sua simplicidade, o objecto articulado e portátil destinava-se ao encosto e repouso das mentes inebriadas pela "fragrância negra", outro dos nomes dados na China ao narcótico extracto da Papaver somniferum..A papoila era conhecida no Império do Meio desde tempos imemoriais, mas foram os europeus - os holandeses, primeiro, os ingleses, depois - quem para lá levou o ópio em larga escala, bem como o tabaco, entretanto descoberto no Novo Mundo. Em meados do século XVI, quando Garcia de Orta escrevia o Colóquio dos Simples e Drogas, já se fumava tabaco em Guangxi, e com o passar dos séculos começa-se a fumar ópio por todas as partes sínicas, especialmente nas cidades portuárias. No século XIX, o comércio floresceu de forma avassaladora, com lucros da ordem dos 500% líquidos. Rudyard Kipling, que em 1880 percorreu as plantações e as manufacturas de ópio na zona de Patna, na Índia, descreveu na sua reportagem In an Opium Factory o gigantismo dos armazéns da papoila, as fábricas imensas onde trabalhavam centenas de homens a uma cadência alucinante. Vendo os seus súbditos entorpecidos pelos fumos da papoila, com um número inconcebível de 4 a 12 milhões de viciados no ópio, por duas vezes os imperadores da dinastia Qing tentaram proibir a entrada da droga no país. Duas guerras se travaram - sim, as Guerras do Ópio -, duas vezes Inglaterra derrotou a China. O Império entrou no que muitos chamaram "Século da Humilhação", sendo obrigado a abrir os seus portos aos navios britânicos carregadinhos de droga trazida da Índia e, de caminho, a entregar Hong Kong à pérfida Albion, um empréstimo forçado que durou 155 anos..São bem diferentes as guerras do ópio dos nossos dias. Há hoje um novo e bem mais poderoso inimigo. A Internet, claro, mãe de todos os males contemporâneos. De acordo com o Global Drug Survey de 2018, 25% da droga consumida actualmente no Reino Unido é comprada através da Internet, mais precisamente na tenebrosa Dark Web, reino das trevas onde se cruzam tráficos e crimes de toda a espécie. Na Finlândia chega-se aos 46% e na Noruega aos 30%, liderando a Alemanha o volume de negócios à escala europeia. Os países com mais hábitos de compra online ou com maior controlo policial são os que, naturalmente, registam maiores taxas de compra de estupefacientes na Dark Web (o Reino Unido, por exemplo, está coberto de câmaras de videovigilância nas ruas, o que, como é óbvio, favorece o comércio digital). Garantem os optimistas que desta forma se acaba com os traficantes de rua e que a qualidade do produto e a confiança nos vendedores são asseguradas pelas avaliações feitas por quem consome, à semelhança das pontuações que damos aos hotéis ou aos restaurantes. Encomenda-se o produto a um vendedor bem classificado, paga-se em bitcoins, recebe-se a droga ao domicílio, no conforto do lar, por correio expresso ou normal. O anonimato de quem vende e de quem compra está mutuamente garantido pela encriptação das comunicações e os consumidores têm a vantagem suplementar de, através deste comércio discreto por via postal, se conseguir esconder mais facilmente o vício da família, dos amigos, dos conhecidos. Mais ainda: nenhum traficante de rua pode competir com a variedade da oferta existente na internet - o Alphabay, líder do mercado negro da Dark Web, tem mais de 240 mil anúncios de drogas e seus derivados. E a polícia, evidentemente, enfrenta muito mais dificuldade em combater esta nova forma de tráfico, que gera já muitos e muitos milhões: o Silk Road, encerrado pelo FBI em 2013, movimentava 1,2 mil milhões de euros e o comércio digital de droga explodiu desde então..Por cá, pelo que a minha ignorância sabe, ainda não se deu grande atenção a tudo isto. Há notícias esparsas de que a PJ acompanha o assunto, pouco mais. Possivelmente, o que se passa no tráfico de droga através da Dark Web prefigura e antecipa o que seria um mundo em que o comércio de estupefacientes estivesse inteiramente liberalizado: escasso ou nenhum controlo policial, credenciação do produto por um sistema auto-regulado de pontuações, compra e venda isentas de riscos e percalços. E, no entanto, o facto é que a idade dos consumidores é cada vez mais baixa e que em países onde é maior o recurso à Dark Web as mortes por overdose têm aumentado, como sucede no Canadá ou no Reino Unido. Pode até não existir nenhuma conexão entre essas mortes e o tráfico digital, mas a coincidência dá que pensar; é agora mais fácil a um traficante anónimo, com um nome fictício, vender aos incautos produtos adulterados, quimicamente letais. O comércio de drogas pela Internet não parece ser o paraíso que alguns propagandeiam. Mas, dizem os especialistas, ainda é cedo para tirar conclusões. Seja como for, uma coisa é certa: se há vícios virtuosos, a droga não é um deles..Historiador. Escreve de acordo com a antiga ortografia.