Colina de Santana. Há 500 anos a tratar da saúde de Lisboa
Quem entre no Hospital de São José e repare no monograma da unidade hospitalar tem bons motivos para ficar intrigado. O que faz de um O, com um S no meio, a marca do São José? A resposta tem 500 anos: Omnia Sanctorum - Todos-os-Santos. O nome veio do sopé da colina para ficar gravado na história daquele que foi o mais imponente edifício jesuíta da cidade de Lisboa.
É pela entrada principal do São José, virada para a Praça do Martim Moniz, que se encontra ainda hoje uma parte do Convento de Santo-Antão-o-Novo. O pórtico de entrada é bastante mais tardio: data de 1811 e evoca a derrota de André Massena, o general que comandou a terceira invasão francesa.
Célia Pilão, administradora hospitalar do Património Cultural do Centro Hospitalar de Lisboa Central, guia-nos pelos espaços históricos do São José. Logo em frente ao pórtico, o edifício da biblioteca guarda o que restou da antiga igreja do convento: oito estátuas dos apóstolos, hoje colocadas na parede exterior. Entrando no átrio, que foi em tempos a entrada nobre do colégio jesuíta, sobem-se as escadarias para chegar ao que é hoje o Salão Nobre do hospital, a famosa sala da Aula da Esfera, em que durante 170 anos foram ensinadas ciências exatas - Matemática, Geometria, Aritmética, assim como Náutica, Engenharia Militar e Arquitetura. Estas aulas, muitas vezes dadas por professores jesuítas chegados do estrangeiro (e em muitos casos em trânsito para o Oriente), ficaram na história da Ciência. Terá sido nesta sala que se usaram pela primeira vez telescópios em Portugal. Toda a envolvente é dedicada às ciências matemáticas, com painéis de azulejos com motivos científicos que vão da ótica à mecânica, da engenharia náutica à geometria. São caso único no imenso património azulejar do hospital, que se estende por corredores, escadarias e enfermarias, variando das cenas palacianas às caçadas, de episódios do Antigo Testamento a batalhas, passando pelas composições em padrão.
De regresso ao átrio, é aí que está uma maquete do Hospital Real de Todos-os--Santos. Ficava na Praça da Figueira e ainda funcionou durante 20 anos após o terramoto. Em 1759, o Marquês de Pombal extingue a Companhia de Jesus e expulsa os jesuítas. Ora, tendo estes na colina de Santana um edifício tão imponente como o do hospital, que ainda por cima não tinha sofrido grandes estragos com o terramoto, o episódio seguinte da história de Santo Antão-o-Novo torna--se óbvio - o grande colégio jesuíta é entregue à administração do Hospital de Todos-os-Santos e, em 1775, dá lugar ao Hospital Real de São José.
O edifício chegou a ter aquela que era à altura a mais imponente igreja da cidade de Lisboa e uma das maiores do país. Mas se a igreja caiu por terra (as abóbadas desabaram com o terramoto e o que ficou acabou por desaparecer), ficou o que era a sacristia e é agora a majestosa capela do hospital, obra do arquiteto João Antunes, datada de finais do século XVII e hoje classificada como monumento nacional.
Com um teto altíssimo, integralmente coberta por mármores coloridos (sobretudo a rosa e negro), a sala da capela é ladeada por dois enormes arcazes (arcas) em ébano e pau-santo, com 20 metros de comprimento. As paredes laterais são rasgadas por quatro janelões de um lado, e outros tantos do outro, mas neste caso em espelho criando a ilusão de luz natural (uma inovação ao tempo, que viria depois a multiplicar-se noutros espaços). A grandiosidade da sacristia tem uma explicação. D. Filipa de Sá, terceira condessa de Linhares, a mecenas do edifício, então considerada a viúva mais rica do país, exigia a realização - para sempre - de várias missas diárias, uma delas cantada, um serviço que devia ser assegurado por 11 capelães, residentes em habitação própria no local e tribuna para o canto.
Santo António prega aos peixes
Atravessando o Campo Mártires da Pátria, logo ali a dois passos surge Santo António dos Capuchos. A frontaria da igreja que se mostra logo à entrada não deixa dúvidas: eis outro antigo convento. Bem mais pequeno do que Santo Antão-o-Novo: aqui viviam pouco mais de uma dezena de frades. Franciscanos - nos Capuchos não há opulência. Mas também já não há muito do que havia - até há 20 anos a igreja serviu de espaço de arquivo ao hospital, chegou a ameaçar ruína. Ficaram os azulejos, nomeadamente um painel com Santo António a pregar aos peixes. Logo por baixo, alguém com um peculiar sentido de humor colocou um... aquário. Do património dos Capuchos consta também um relógio de sol datado de 1586 (a data da fundação do convento), que é considerado o mais antigo de Portugal, hoje embutido no topo de uma cisterna. E um imenso espólio, um verdadeiro museu da história da medicina, já lá voltaremos.
Descendo dos Capuchos até Santa Marta, novo convento, desta vez de clarissas franciscanas de clausura. Da rua ainda se vê a porta lateral, de um azul desmaiado, por onde entrava a população para a missa - as freiras do convento ficavam resguardadas no coro baixo do convento (que é hoje a capela do hospital), onde assistiam à missa sem serem vistas. Hoje a porta lateral já não é aberta e na igreja já não se faz cerimónias, trata-se de... fichas clínicas. Apesar de estar classificada como imóvel de interesse público, a Igreja de Santa Marta está hoje ocupada por metros de estantes metálicas e milhares de ficheiros clínicos. As paredes estão despojadas, do altar não sobrou nada. Célia Pilão aponta um buraco que se vê no teto: a custo consegue descortinar-se uma pintura que foi tapada por um teto falso não se sabe quando nem porquê. A descoberta já leva anos, no entretanto nem o buraco foi tapado nem a pintura destapada.
Quem entre pela entrada principal dos Hospital de Santa Marta e vire à esquerda, entra no que eram os claustros do convento. É a partir daqui que se chega à Sala do Capítulo, totalmente forrada com azulejos, com painéis que retratam a vida de Santa Clara e de São Francisco de Assis.
O Hospital de Santa Marta foi inaugurado em 1908, para receber os doentes do Desterro - o que nunca aconteceu, vindo a transformar-se num hospital escolar afeto à Faculdade de Medicina. Foi aqui que em 1927 se viu, pela primeira vez no mundo, a circulação do sangue nos vasos do cérebro. Na Sala do Capítulo está a mesa em que Egas Moniz - que, reza a história, chegado de Coimbra foi muito mal recebido e era pouco apreciado no Santa Marta - fez a primeira angiografia.
Há 500 anos a tratar da saúde a Lisboa
À memória conventual da colina de Santana juntam-se, ou sobrepõem-se, 500 anos da história da medicina em Portugal. Ou mais, até, se remontarmos à leprosaria de São Lázaro, ainda no século XIV, uma das primeiras construções feitas na colina. Sant"Ana é também o berço do ensino da medicina em Portugal. E quando, no início do século XX, com Curry Cabral como enfermeiro-mor do São José, avança uma grande reforma dos hospitais de Lisboa, é ainda na colina que vai procurar novas soluções (caso, precisamente, do Hospital Curry Cabral e do Santa Marta).
São José, Capuchos e Santa Marta contam mais do que a história do seu património arquitetónico. Pelos três hospitais passaram os grandes nomes da medicina portuguesa, e pelas salas e pelos corredores dos três edifícios distribui-se um verdadeiro museu da medicina - alguns objetos únicos, muitos centenários, vão surgindo a cada passo. Nos Capuchos, uma cave inteira guarda toda a espécie de utensílios médicos antigos, divididos por especialidades, um verdadeiro hospital em versão antiga. Outra sala, junto aos claustros do antigo convento, guarda uma coleção única de dermatologia, resgatada do Desterro quando este hospital fechou portas.
São José, Capuchos e Santa Marta têm destino marcado enquanto hospitais: vão fechar portas quando abrir o novo hospital de Lisboa Oriental. E a colina de Santana vai mudar de rosto. Os três edifícios são, aliás, já propriedade da Estamo, a empresa pública responsável pela gestão dos edifícios do Estado. Contactada pelo DN, a Estamo considerou "prematuro" avançar qual o futuro dos terrenos e edifícios destes hospitais, afirmando que a questão está a ser "tratada no âmbito do Plano de Ação Territorial para a Colina de Santana, em elaboração pela Câmara Municipal de Lisboa, com a participação da Estamo". Já a autarquia não respondeu às perguntas do DN.