Colher afectos na terra do sol engarrafado

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vindimador. O que faz um repórter de barriga em forma de pêra madura agachado nos socalcos matriciais de Torga, sobranceiros ao Pinhão? Tenha ele um pingo de dignidade, só lhe restará, duriense de velha cepa, venerar a faina vindimária que um povo sublima num hino erguido à vinha, a travos prenhes de fragrâncias que irão ser desfrutados em respeitosa liturgia em honra de Baco. Viva o bago, o seu reino! Eu vivo o espírito do vinho

Ah, a vindima, tantas vindimas que a lembrança vai destilando com o desfolhar da vida. Agora aqui, em Casal de Loivos, com o Pinhão lá ao fundo, esplendoroso, e um sol mordendo a pele, afago a tesoura de poda cujo suave chilrear do bico vai desnudando as cepas.

Manhã cedo, lavada e luminosa, larguei da magnífica Quinta do Portal, concelho de Sabrosa, onde o memorável jantar, onde os eflúvios do bom vinho, me escalavrou olheiras de boémio ajoelhado em louvor das mais belas castas. Desço em jipe pelo colossal vale do Pinhão rompendo brumas, paletas de tons sensuais, inebriantes. Por fim, uma quinta esmerada, mesmo no cume do deslumbramento, propriedade de Bartolomeu Morais Ribeiro, 70 anos remoçados. Da Régua vão chegando os vindimadores, meus comparsas de ocasião, povo amável, narinas escancaradas para a respiração da terra, para o seu hálito telúrico, a fruta, a esteva.

Numa algazarra de parteiros de néctares para a Quinta do Portal, espalhamo-nos pelos bardos, "não caia, cuidado", alertam-me, de certo preocupados e perdidos de gozo pela má jeiteira do repórter andarilho, cativo do amanho da terra, nado e criado em Almendra, concelho de Foz Côa. "Vá, coma, coma" e estendem-me uma borda de pão, uma rodela de chouriço caseiro nela espreguiçada.

São homens e mulheres de Baião, Mesão Frio, Resende, da Régua, Moura Morta, Pardelhas, Vale Mendiz que vindimam cepas há mais de cem anos plantadas num fantástico miradouro cantado por nacionais e estrangeiros, posto o Alto Douro, Património Mundial, estar agora na mó de cima, na moda. Dou em magicar: após indizíveis andanças por este Douro superior com o ferrete de patego, eis que tudo se transfigurou, é giro, é fashion este Douro superior que há décadas calcorreio, maravilhado, absorto.

"Pegue aí nesse cesto, se faz o favor", dizem com uma polidez de humilde nobreza e eu, desajeitado e anafado como sempre estivera em outras vindimas ao longo da primeira região vitícola demarcada do mundo (1756), carrego com os cachos amontoados na caixa de plástico de 20 quilos em honra de castas como as de touriga francesa, tinta roriz, bastarda; em honra de Maria Teixeira, de Joaquim Santos, de António Fidalgo e mulher, Maria Lurdes, de Ângelo Mateus, de Pedro Alves, de Telmo Carvalho, de Lúcia Monteiro e de outros companheiros.

Ah, sim, ofegante, suarento, tropeçudo, só posso saudar esta gente consagrada ao reino do xisto e do terriço, ao mais prodigioso bebedouro. Eu vos saúdo, gente de Barqueiros a Barca de Alva, eu vos saúdo, filhos de um povo que nos altares aos matagais resgatados haveis desbravado restolho e penedia a golpes de acordeão, bombo, ferrinhos, rabeca chuleira.

E então, embriagados pelos bagos D´Ouro, no suadouro dos cardenhos cerziram mantas de paixões e ramboiadas. Depois, ao outro dia, encapuchada de serapilheira, trouxa sobre o cachaço, a roga, taf, taf, em fila sobre o ventre da terra carreava cestos vindimos feitos com varas de castanheiro, cestos de 75 quilos. Impressionante odisseia de estafeiras e borracheiras a troco de um rabo de sardinha, de uma sopa, de uma côdea para matar a fome mais encanzinada.

Longe do caos urbano

Enxugo o suor do rosto, respiro ares benignos, reconcilio-me com os dias azedos. Purificado do caos urbano, contemplo aquela paisagem genesíaca, aquele assombro de horizontes geométricos num brinde à vide e à vida ávida de desforras e que manda às urtigas presunções, vedetismos e fúteis caminhos. Na terra fecunda revolvo as mãos afeitas ao delete, ctrl, F5 do teclado. A imponência da terra... eu te louvo, regaço do magnificente ciclo vegetativo do vinho fino, espirituoso, vinho único, vinho de povo, de sol, de pedra, de arreigado amor pisado.

"Cuidado, não caia", o aviso repetido pela manhã súbito estremecida pelo tuáááá do comboio oriundo do Pocinho com destino até Campanhã, que trilha a fundura do vale que me transporta à infância- -criança do pouca-terra a vapor, do rio sanhudo, dos barcos rabelos encastelados de pipas e de afoitezas.

A ressaca paga-se cara, mea culpa, mea culpa, estou frágil e em meu redor o labor ágil. Vindimadores cheios de ânimo, ainda que um pouco acanhados pela presença dos jornalistas, trabalham as oito horas estipuladas a 25 euros, outros a 30, conforme o acordado com os empreiteiros agrícolas. "É uma alegria pegada. Conhecemo-nos uns aos outros, convivemos muito, que é a coisa mais linda que existe. Há aqui quem trabalhe na construção civil, na hotelaria, um reformado da GNR que conduz a camioneta com as uvas para a adega."

Que sim. E põe-se a recordar: "Já quando estava no activo tirava férias para ir à vindima. É um ambiente de esforço e de festa. Gosto de conhecer pessoas novas." Também eu, pensei, e toca de vindimar mais uns cachos com o calçado afofado no solo íngreme, seco e poeirento sob o chilrear da tesoura da poda que parece augurar vindouro grãozinho na asa.

Já pelos alvores do dia, o homem, o viticultor, a sua serena quanto digna postura me tinha remexido os bacelos da alma. Bartolomeu Morais Ribeiro divagava pela montanha exultando com aquela luz, com aquele logradouro de soberba beleza, sempre de olho no repórter andarilho, não fosse uma mosca importunar-lhe a pachorra. Bem haja, aqui lho digo, amigo. A dada altura, apontando para o cemitério de Casal de Loivos, desabafou: "Receio pisar as raízes onde fui esculpido." Pronto. Ali estava, deduzi, um ser inteiriço enxertado de carácter, um ser alfobre de histórias e de peripécias. Falou-me de um beijo frio, o da despedida, dado a quem parte para sempre. "Com terno sentido dei àquele que foi o dador do meu embrião", o tal beijo frio.

Vindimador poeta

"Então, há muito que conhece o Douro?!, pois bem, terminando a vindima, vamos à minha adega." Entendi a hospitalidade, ou o vinho não divinizasse o sentimento, aprofundando a fraternidade. Mais uns cachos colhidos, clique, clique, tornam a chilrear as tesouras da poda, e eis que Bartolomeu Ribeiro me oferece um poema da sua lavra celebrizando O Homem do Douro. "Transportando o que se colhe neste Douro/ Não é um transporte que muito se adore/ Tem de trabalhar no Douro (é pobre)/ Este Douro composto e ornamentado/ De socalcos graníticos, e vinhedos, inclinado/ Aonde diariamente se desce e se sobe/ Com muito esforço se transporta este tesouro./ Ao almoço come uma sardinha e um caldo/ E é assim o dia todo de labuta de este Homem/ Ao almoço sopa e sardinha, e à noite pouco mais come/ Estafado de trabalho, num dia cálido, suor e fome/ Dormir? Numa tarimba de tábuas e palha, e aí dorme./ Ao outro dia, fingindo de bem dormido e alegre/ Pega de novo na trouxa e no cesto vazio, que vazio é leve/ Na vinha já há outro cesto cheio à espera de quem o carregue/ Com o mesmo destino subindo e descendo os oblíquos socalcos/ Quantas vezes o calçado sem os fundos, os pés quase descalços/ A roupa colada ao corpo de suor, comer, só sardinha e caldos/ No fim da vindima, vai embora, vai embora sem saudades dos socalcos/ Com meia dúzia de escudos, e o patrão com avultados saldos..."

Assim era há coisa de 30 ou 40 anos, ressalva o homem, o antigo dispenseiro da Quinta do Noval que eu bem conheci numa vindima de 1979. Como me senti pequenino, quase insignificante face àquele povo encardido pela poda, cava, escava, redra, surriba, planta, enxerta, tesoura. Um povo que ergue, enxofra, sulfata, pisa, trasfega, povo que apanha chapadas de sol, as suas rugas prematuras não o conseguem negar. E os corpos vergados à bruteza do calvário duriense deitavam cá para fora um rio pegajento e sujo, rio melodia símbolo supremo do trabalho, símbolo supremo do mosto que sai do rosto.

As mãos, deformadas, esvoaçavam de cepa em cepa, asas expiando penas próprias e alheias e ao vinho se entregavam, e ao vinho se davam até ao momento das mãos em prece, no esquife. O esgadanhar a vida a muito obriga, penso enquanto alombo com mais uma caixa de uvas debaixo deste sol de ventas arreganhadas.

Paleta de cores

Para trás, vejo, ficam matizes verdes, acastanhados, louros, âmbar, um chão ondulado a perder de vista. Pintas de vermelho, sensações amadurecidas que o Douro, rio, costuma espelhar em perfeita plenitude. Eu, vindimador, recordo então as fidalgas quintas com alvura de pombal sombreadas por ciprestes em companhia de cedros, tílias e araucárias de que beneficiam, à fresca, os tanques de cantaria povoados de carpas. Na casa solarenga com capela contígua dormem talhas de azeite, presuntos dependurados do tecto, queijos que enrijecem nas tábuas, frascos de compotas filtrados pelas cortinas de linho. Cheirando a cinza, a cozinha templo de formas de latão, panelas, escumadeiras, alguidares. E lá está o arco da lareira, as panelas de três pés. E, porventura, um atonelado lorde, arfante, com a figadeira a reclamar por chás.

Alto Douro do meu coração, vindimador enrascado condenado ao ar condicionado. Entre o silêncio das oliveiras e a força das raízes de uma figueira perpassam-me as vindimas da fome, do tipicismo, para inglês ver. A vindima descrita por Torga, que se inspirou nestas bandas, neste povo, Quinta da Cavadinha, vinho, sede de amores, ai o vinho, ai o fruto da videira e do trabalho do homem, consoante é dito na eucaristia, o vinho, mais de 200 vezes citado na Bíblia. Pois o vinho que vindimo, que vindimamos, correrá palácios, salões, jardins, banquetes oficiais; com ele hão- -de celebrar convénios, nascimentos, natais, paixões. Com ele se afogarão partidas e separações.

"Deixe, eu ajudo", o trato rodeia-me ao tentar pôr mais uma caixa de uvas aos ombros. O sol em fogo pede a prometida frescura da adega, onde Bartolomeu Morais serve ao repórter andarilho um copo de vinho. E com que galhardia mostra os cajados encostados a um canto, cabos rugosos a que chamei "diplomas de trabalho". Ele concordou e... mais um copo!

Vindima no seu termo, torna-se a enxugar o suor, bagos dele que fazem arder os olhos. A despedida, sentida; o até sempre, até sempre, e trocam-se moradas, e-mails, números de telemóvel. Retornamos à Quinta do Portal, em Celeirós do Douro, Sabrosa, retornamos ao enoturismo, ao exterior da grandiosidade do armazém de envelhecimento desenhado no estirador de Siza Vieira. Entram camiões de uvas que perfumam os ares, provam-se vinhos balsâmicos, suaves, frutados.

Dizem-me que a quinta facturou no ano passado cerca de 3,6 milhões de euros, um crescimento de 30%. Ao saber de antanho, a inovação das novas gerações que continuam a louvar os artífices do Douro, grandes artífices de festas e fadigas das vindimas. Cansado, dou ainda em folhear o livro Phala a Alma, de uma singular beleza. E, antes do sonho, estremeço com esta proclamação da família Mansilha Branco: "Rasgas a montanha criando novas linhas da vida na palma da mão calejada."|

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