Coletes laranja: da pandemia que não existe ao regresso da lira
"A pandemia? Não existe", disse numa manifestação em Bari o antigo general dos carabinieri Antonio Pappalardo, líder do movimento dos coletes laranja em Itália. "O coronavírus não é letal, só mata aqueles que já estão doentes e têm mais de 80 anos. Já chega de mentiras e falsidades", defendeu, acusando o Governo de Giuseppe Conte de "amedrontar" o povo italiano com a sua "ditadura sanitária". Dias depois, reuniu um milhar de apoiantes na maior praça de Roma, com apelos à demissão do primeiro-ministro. E ainda pediu a saída do país da União Europeia e o regresso à lira. Esta é a mais recente batalha do homem que disse um dia ter conhecido um extraterrestre que lhe mostrou como salvar o planeta Terra.
Pappalardo, de 73 anos, não é um desconhecido em Itália, como eram aqueles que deram voz ao movimento dos coletes amarelos em França que lhe servem de inspiração. Em finais de 2018, os franceses saíram às ruas contra o aumento dos impostos sobre os combustíveis, mas continuaram a manifestar-se contra a política do presidente em geral. Diante dos protestos cada vez mais extremos, com cenas de violência campal nos Campos Elísios, Paris, Emmanuel Macron seria obrigado a fazer cedências políticas.
O "general", como Pappalardo é conhecido, fundou os Gilet Arancioni (ou coletes laranja) ainda no ano passado, depois de conhecer o general francês Didier Tauzin, que chegou a ser candidato presidencial e apoiou os coletes amarelos. Mas as reivindicações de uns e outros são diferentes - ou pelo menos o coronavírus a isso obriga. Pappardalo é descrito pela imprensa italiana como "libertário de direita", doutrina dos que veem o Estado como a principal ameaça às liberdades individuais, ou "turbopopulista". A expressão foi cunhada pelo historiador Marco Revelli para designar um populismo sem povo, a revolta dos que estão à margem, fartos de pagar pelo bem-estar dos que estão no centro, e que são bombardeados pela incitação ao ódio de elites negativas que perseguem o seu próprio projeto de poder e riqueza.
De acordo com o La Repubblica, na manifestação de Roma - que decorreu no Dia da República, 2 de junho - participaram pessoas que estão descontentes com a resposta do Governo à pandemia, muitos das quais por terem perdido o emprego, mas também militantes da extrema-direita e eurocéticos, passando pelos antivacinas. "O coronavírus é só um projeto político, económico e social para vender a Itália à China. Querem impor-nos uma vacina primeiro, para nos obrigarem a assinar depois", indicaram alguns, enquanto outros gritavam que o "5G mata".
O que os une é o descontentamento e um sentimento de raiva, assim como a figura do "general", que numa entrevista ao Corriere della Sera comparou o coronavírus a uma gripe. "É evidente que o problema do nosso planeta não é esta espécie estúpida de gripe chamada coronavírus, utilizada pelas grandes potências para nos submeter. São as radiações eletromagnéticas, há demasiados radares, demasiadas antenas", afirmou.
O coronavírus é o tema que, em plena pandemia, chama mais a atenção. No protesto em Roma, Pappalardo citou o diretor da unidade de cuidados intensivos do Hospital de San Raffaele, em Milão, e médico pessoal do ex-primeiro-ministro Silvio Berlusconi, que alegou que "o vírus já não existe clinicamente". Alberto Zangrillo falou de um estudo que diz que o vírus está a perder potência, com as amostras que são atualmente recolhidas dos pacientes a mostrar uma carga viral muito inferior à que existia há uns meses.
Declarações que geraram polémica em Itália, onde já foram confirmados mais de 236 mil casos de coronavírus e mais de 34 mil mortos. "Agora até os virologistas dizem que este vírus é um disparate", disse Pappalardo, pondo em causa a obrigatoriedade de usar máscara - "não posso olhar para a cara de uma mulher sem saber se ela é bonita ou feia", terá dito, segundo o site Politico.
Precisamente por não usar máscara, e por não terem sido garantidas as distâncias de segurança entre manifestantes, foi multado pelas autoridades.
Nascido em Palermo a 25 de junho de 1946, Pappalardo frequentou a Academia Militar de Modena e a escola dos carabinieri em Roma (o pai tinha sido também um membro desta polícia militar). Subiria nas fileiras até ao grau de general de brigada em 2006, na véspera de sair do ativo por limite de idade, tendo presidido o Conselho Central de Representação Militar e o sindicato das Forças Armadas.
Em 1992 foi eleito deputado por Roma (como independente nas listas do Partido Socialista Democrático Italiano, entretanto desaparecido) e chegou a ser durante algumas semanas subsecretário das Finanças do Governo de Carlo Azeglio Ciampi, em 1993. Teve de abandonar o cargo por ter sido condenado por difamação contra o comandante-geral dos carabinieri (seria mais tarde ilibado). Em 1994, tentou ser eleito eurodeputado, também não conseguiu voltar à política como senador, presidente da Câmara de Palermo ou líder da região de Úmbria (obteve pouco mais de 500 votos em outubro, já à frente dos coletes laranja).
Em 2016, esteve entre os que lançaram o Movimento de Libertação de Itália, de extrema-direita, que entre outras coisas quer "prender o presidente da República em nome do povo italiano". Este tem ligação ao "movimento das forquilhas", com protestos que remontam a 2013 (mais parecidos com os coletes amarelos, porque também incluíam bloqueios de estradas) e que defendiam a dissolução do Parlamento e a devolução do poder ao povo. Agora, além do presidente Sergio Mattarella, o seu alvo é Conte, cujo Governo quer ver cair. Em seu lugar, defende a eleição de uma Assembleia Constituinte, que seria depois responsável por aprovar uma nova lei eleitoral.
Os partidos políticos à direita estão a reagir com cautela aos coletes laranja. Horas antes da manifestação em Roma, a Liga de Matteo Salvini e os Irmãos de Itália, de Giorgia Meloni, tinham protestado na mesma praça, também contra o Governo de Conte. O ex-ministro do Interior condenou os insultos proferidos pelos apoiantes de Pappalardo contra o presidente Sergio Mattarella, dizendo que as pessoas deviam "ter vergonha", mas não falou contra o próprio movimento. Por seu lado, Meloni deixou claro que o seu partido não tem nada a ver com os coletes laranja, mas ao jornal La Repubblica explicou perceber "a forte inquietação do povo".
Já Luca Zaia, presidente da região de Veneto e também da Liga, tinha dito à RAI3 que apesar de ser "pela liberdade de pensamento", há limites que não se podem ultrapassar, comparando a negação da existência da pandemia de coronavírus ao crime de negação da existência de campos de concentração nazis. Apesar de continuar à frente nas sondagens, a Liga está em queda acentuada desde novembro de 2019, tendo perdido desde então cerca de cinco pontos nas intenções de voto.
Há dois anos, num vídeo publicado na sua página de Facebook, Pappalardo explicou como em 2000 foi visitado por um extraterrestre numa noite escura quando saiu de uma das suas casas com a mulher (que no dia seguinte não se lembrava de nada).
O visitante, do planeta Ummo (a 13,5 anos-luz da Terra), deixou-lhe um manuscrito com as indicações do que deve ser feito para salvar a humanidade que ele depois editou e publicou em 2010 com o título L'Utopia dell'Ummita (A Utopia do Umita, numa tradução livre).
Não é o seu único livro nem a sua única incursão na cultura, sendo também compositor. As suas obras - que incluem uma missa cantada dedicada às forças de paz em todo o mundo e uma homenagem a Madre Teresa de Calcutá - já foram apresentadas no Teatro da Ópera e no Teatro do Coliseu, em Roma. Na entrevista ao Corriere della Sera disse que era um dos melhores músicos do mundo.