Colégio da Gandarinha: solidariedade por herança
A HISTÓRIA do Colégio da Gandarinha, em Cucujães, tem raízes no século XIX, emergindo de um mapa que tem como pontos referenciais Portugal, Brasil e Inglaterra. Fruto do comércio entre estes três países, a família Pinto Leite acumulou uma imensa fortuna, ao mesmo tempo que foi subindo na escala social e nobiliárquica. O destino da Bahia, no Brasil, cruzou-se com o de Cucujães, distrito de Aveiro, em 1855, quando Clementina Libânia Pinto Leite (1840-1921) se casou com o seu tio, Sebastião Pinto Leite (1815-1892), 25 anos mais velho. A futura condessa de Penha Longa nasceu e viveu no Brasil até à idade de 10 anos, completou os estudos em Inglaterra e, aos 15, casou com o irmão do seu pai, algo que na época era perfeitamente normal e comum, especialmente entre as famílias nobres ou abastadas (a própria rainha D. Maria I casou com o tio, D. Pedro III).
Comerciante reputado, Sebastião Pinto Leite foi sempre um amigo da sua terra natal, Couto de Cucujães, onde casou com Clementina e onde tinha o Solar da Gandarinha. A jovem Clementina cedo demonstrou preocupação com os mais desfavorecidos. Apesar ter ido viver para Lisboa após a morte do pai, e onde dirigiu o Asilo da Lapa, a então viscondessa da Gandarinha nunca esqueceu Cucujães. E foi em 1876 que, juntamente com o marido, fundou o Asilo da Gandarinha, «para acolher crianças desvalidas que ali passaram a receber alimentação, vestuário, cuidados médicos e educação dos 3 aos 12 anos».
Sem descendência e possuidores de avultada fortuna, reservaram parte dos seus bens para ajudar os desfavorecidos. E não apenas em Cucujães. A condessa de Penha Longa apoiou diversas instituições pelo mundo fora, com destaque para um orfanato na China Setentrional, onde ainda criou um hospital.
Das muitas obras caritativas que fundou ou apoiou, o Asilo da Gandarinha foi, como diz o seu sucessor actual, «a única que deixou a família à frente por testamento e que ainda hoje subsiste». Vasco Pinto Leite, sexto visconde dos Olivais, é quem dirige a instituição, em resultado da vontade testamentária da fundadora.
Aquando da sua morte em 1921, a condessa de Penha Longa legou à instituição diversos bens e propriedades, Quinta da Gandarinha incluída. Como ressalva, determinou que os primeiro e segundo andares do solar ficassem reservados para o seu herdeiro legítimo, de geração em geração, como forma de assegurar «a continuidade da instituição».
«NÃO É UM FARDO, é uma grande responsabilidade, com uma carga histórica de mais de 130 anos e que desempenho com gosto e, enfim, algum sacrifício pessoal», diz Vasco Pinto Leite, actual presidente da direcção da Fundação de Penha Longa, que dirige o agora chamado Colégio da Gandarinha. «Tenho de vir a Cucujães várias vezes e estar atento à evolução da instituição, mas é um gosto, sobretudo, porque sinto que também é muito pedagógico para os meus filhos. Eles já nascem com a noção de que têm responsabilidades de ordem social», acrescenta o economista e gestor, que há quatro anos assumiu os destinos da instituição.
«Foram duas grandes heranças que a condessa deixou. Uma de ordem material, o que possibilitou que a família, durante noventa anos, tenha a suas expensas mantido a instituição. Ela esteve quase a fechar, porque tinha poucas condições de ordem material, pois eram muitas as crianças e também professores. Houve alguns dos meus antecessores que tiveram de injectar recursos ao longo de muitos anos para que toda esta obra se mantivesse. Esta é a faceta material da herança, a outra é esse legado de responsabilidade social que a família Pinto Leite herdou e que veste muito bem a camisola», assevera Vasco Pinto Leite, especificando esse empenhamento: «Quando em 2007 organizei o primeiro encontro mais alargado da família Pinto Leite, em que juntei cinco dos dez ramos da família – só há descendentes de seis deles e houve um que não foi possível trazer –, senti que a família estava de corpo e alma com a fundação. Realizámos aqui várias acções, reunindo recursos para poder suportar as bolsas de estudo para pessoas carenciadas, e a generosidade da família foi muito grande.»
ALIADAS FIÉIS da instituição e da condessa foram sempre as religiosas Filhas da Caridade de São Vicente de Paulo. Em 1891, a congregação estabeleceu o protocolo de cooperação com o Asilo da Gandarinha que ainda hoje vigora, tendo ultrapassado momentos muito difíceis, como a implantação da República [ver texto em baixo].
Porém, uma instituição com mais de 130 anos de história viveu momentos bons e momentos maus. Com a crise internacional de 1929, a família Pinto Leite viu o seu património ficar reduzido e, perante a falta de maiores apoios estatais, a instituição entrou numa crise profunda. Em 1940, o Asilo da Gandarinha foi reconhecido como instituição de utilidade pública. Quatro anos volvidos, e após muita insistência, passou a receber uma comparticipação estatal de 44 contos (220 euros).
Entre a morte da fundadora e os anos de 1960, o Asilo da Gandarinha viveu grandes dificuldades, tendo o seu fecho iminente. «Quando o meu pai aqui chegou, em 1964, isto estava de rastos. Não havia condições, as irmãs tinham muito pouco que comer e as crianças igualmente. Tinham uma sopa e um pouco de pão e era tudo muito miserável», recorda Vasco Pinto Leite, acrescentando: «A Direcção-Geral da Assistência da altura disse que ou a instituição se desenvolvia ou fechava.»
A morte de duas crianças, vítimas de raquitismo, «foi como uma pedrada na cabeça do meu pai», lembra o actual responsável. Fernando Maria Pinto Leite decidiu que a tragédia não podia voltar a suceder. «Ele empenhou-se, junto de amigos e do Estado, que aos poucos o foram ajudando», lembra o filho que guarda a recordação de um episódio: «Um dos aproveitamentos que ele fez foi investir em galinhas, que punham ovos para serem vendidos. Eu era pequeno, mas recordo que o meu pai vinha cá, com a sua carrinha Volkswagen verde, e chegava a Lisboa com o banco da carrinha rebatido e cheio de caixas de ovos, que vendia aos amigos. Enquanto não vendesse os ovos todos não descansava. O meu irmão António costumava dizer que a Gandarinha era a amante do nosso pai.»
Foi nessa altura que se deu a reconversão das actividades agrícolas, nos terrenos circundantes ao Solar da Gandarinha, e a recuperação das instalações que albergavam o infantário e a escola primária.
RECUPERADA a sustentabilidade da instituição, o Asilo da Gandarinha transformou-se, em 1975, na actual Fundação Condessa de Penha Longa, com a participação de cucujanenses nos órgãos directivos. A requalificação processada ao longo dos últimos anos é reconhecida pela população, sendo o actual Colégio da Gandarinha uma das instituições mais reputadas na região.
Apesar de continuar a ser designada popularmente como «o asilo», Vasco Pinto Leite, ainda no consulado do pai, propôs a alteração do nome, o que veio alterar a imagem da organização. «A palavra “asilo” já quase não existe e era preciso dar um passo em frente. Assim, em vez de asilo passou a chamar-se Colégio da Gandarinha», conta Vasco Pinto Leite, acrescentando: «Fizemos um grande esforço para requalificar as instalações, reforçar pedagogicamente o corpo docente e o pessoal auxiliar, que está cada vez mais competente e ciente do seu trabalho, pelo que somos muito reconhecidos na região. Quando assumi isto há quatro anos, a instituição tinha 164 alunos e hoje tem 186, isto é, houve uma progressão de 14 por cento, num período de quebra da natalidade. Isto diz muito do esforço que tem sido feito nos últimos anos no sentido de que esta escola tenha mais alunos e seja reconhecida como a escola por excelência do concelho de Oliveira de Azeméis, que acho que é.»
Apesar disso, não esquece o ideário da fundadora: «Não fazemos distinções a nível socioeconómico e temos sempre uma parte dos recursos da instituição para suportar os casos mais difíceis. A herança foi exactamente essa e vai continuar. Todos os anos temos aqui pessoas com poucas possibilidades e é importante termos esse tipo de pessoas, porque o que queremos promover são as pessoas, humanamente, independentemente da condição económica e cultural dos pais.»
HOJE, a Fundação Condessa de Penha Longa é uma instituição particular de solidariedade social (IPSS), cujo orçamento é suportado em dois terços pela Segurança Social e o Ministério da Educação. O piso térreo do solar recebe os alunos do ATL, as antigas pocilgas foram transformadas nas salas da antiga instrução primária, estando a creche e o infantário instalados nuns edifícios anexos construídos para aquele fim.
À frente da instituição há quatro anos, Vasco Pinto Leite tem projectos para o futuro: «Requalificação permanente das instalações e reforço na formação dos professores e funcionários em geral.» Em marcha tem já duas vertentes específicas. «Uma prende-se com a presença das Irmãs de São Vicente de Paulo e passa por privilegiar uma educação católica, vocacionada para a formação do homem do futuro; outra é darmos muita importância a uma educação tendo em conta os valores da preservação do ambiente. Esta é uma escola que há muitos anos é associada a essa questão e pretendemos dar continuidade ao processo da eco-escola, como fomos classificados no ano lectivo de 2007/08, que tem que ver com a sensibilização dos alunos para as questões ambientais.»
COM O OBJECTIVO de preservar a memória, Vasco Pinto Leite quer contar a história da instituição num livro, tarefa que está a cargo de sua tia Rita Pinto Leite. «E um projecto importante sobre a história da instituição desde a sua fundação, com enfoque especial na figura da condessa de Penha Longa, mas até aos nossos dias. Envolve membros da família, a Congregação de São Vicente de Paulo e as pessoas de Cucujães, que sempre estiveram ao lado da instituição e que tudo fizeram para que isto seja o que é hoje, um dos baluartes e um dos emblemas de Cucujães.»
A herança legada pela condessa de Penha Longa tem já no horizonte o próximo sucessor. António Vasco Pinto Leite, único filho varão do actual visconde dos Olivais, perfila-se já na linha de sucessão. «Pensando que tenho de desenvolver a actividade da instituição e que a família tem de ser preponderante, não tenho alternativa senao aos poucos ir chamando a atenção do meu filho para um ou outro aspecto. Ele tem 15 anos, é novo ainda… Mas lembro-me de que o meu pai, a partir de uma certa altura, tinha mais interesse em que eu viesse aqui do que os meus irmãos, porque achava que eu é que tinha de ter um gosto especial pela Gandarinha», diz Vasco Pinto Leite. «Faço um esforço para trazer aqui a família, porque isto é um legado familiar.»
Afonso Costa e as freiras
Desde a sua criação, há 133 anos, o agora chamado Colégio da Gandarinha viveu períodos difíceis. Um dos mais complicados foi a altura da implantação da República, em 1910 – e o furor laico que esta carregou.
A Lei da Separação da Igreja e do Estado, logo em 1911, teve como consequências a expulsão dos jesuítas, a criação do registo civil, a privatização dos bens da Igreja Católica, a proibição das procissões fora do perímetro das igrejas, a proibição do uso de vestes talares (religiosas) fora dos templos, etc.
A condessa de Penha Longa, já com 70 anos, viu-se perante uma situação que não estava disposta a acatar. Movendo influências ao mais alto nível, conseguiu junto do homem-forte do novo regime, Afonso Costa, ministro da Justiça e Cultos do Governo Provisório, que as irmãs da Congregação de São Vicente de Paulo se mantivessem ao serviço da instituição.
Em carta endereçada ao administrador do concelho de Azeméis, o ministro da Justiça, que posteriormente se deslocou a Cucujães, ordenou que nada fosse feito contra as freiras: «Até novas instruções, mantenha o statu quo relativamente ao Asilo da Gandarinha.»
Apesar do beneplácito do ministro, as irmãs de São Vicente de Paulo tiveram de tomar algumas precauções. «A condessa queria mesmo as irmãs como suas colaboradoras e fez tudo para que tal acontecesse», contou à NS a irmã superiora Angelina Araújo, uma das três Filhas da Caridade de São Vicente de Paulo que ainda hoje trabalham na Gandarinha.
«As irmãs saíram de Portugal, excepto as do Funchal, que estavam sob tutela sueca, as do Hospital de São Luís, em Lisboa, sob a bandeira francesa, e aqui as da Casa da Gandarinha», diz. «No entanto, uma das atitudes que tiveram de tomar foi tirar o hábito, por precaução, para estarem mais à vontade a exercer a sua acção junto dos pobres e das crianças.»
A congregação, que está a celebrar os 150 anos de presença em Portugal, tem hoje apenas três freiras na Gandarinha. À irmã superiora juntam-se a irmã Deolinda e a irmã Conceição, que nos seus 60 anos vai de motorizada pela freguesia fora levar a comunhão aos acamados.
Mecenas do padre Himalaia
Um exemplo do carácter visionário da condessa de Penha Longa foi o apoio que deu, em 1901, às investigações pioneiras do padre Manuel António Gomes Himalaia sobre a energia solar. Os resultados das investigações do padre Himalaia constituíram a grande atracção da Exposição Universal de St. Louis (EUA), em 1904, onde foi distinguido com duas medalhas de ouro e uma de prata. O contrato que aqui se publica é prova dessa vertente pioneira da condessa, já naquele tempo preocupada com os aspectos inovadores da investigação científica.
A condessa estabeleceu ainda com o padre Himalaya um acordo relativamente aos estudos deste sobre um produto que pretendia ser um sucedâneo da dinamite, a que o clérigo-inventor deu o nome de himalaíte. Porém, anos depois seria anulado, por falta de resultados.