Sara. O nome dela era Sara. Depois, havia as amigas e os amigos que a seguiam em geografia e em acções, mas os seus nomes desapareceram da minha memória. Apenas o nome dela permaneceu, como vívida lembrança daqueles dias. A Sara era esguia, loura e de olhos azuis. Consequentemente, era a rapariga mais popular da escola primária. Apesar de cair nas graças de todos pelos atributos físicos, que faziam dela a rapariga de quem todos queriam ser amigos, e pela destreza intelectual, que fazia dela uma boa aluna, Sara parecia não se sentir satisfeita com a sua condição de ideal de perfeição. .Talvez tenha sido essa insatisfação que a tenha levado a escolher, de entre todos os seus colegas de turma, uma rapariga que era claramente diferente de si e da maioria dos alunos da escola. Escolheu-me a mim, claro. Claro, porque senão não estaria a contar-vos esta história na primeira pessoa e claro, porque o excesso de gordura e o apelido esquisito levavam a que me tornasse num alvo perfeito para as mais variadas diatribes e malvadezas com as quais o grupo dos meninos e meninas fanfarrões se divertia durante os intervalos das aulas. Hoje em dia, já há nome para esse tipo de situações. Chamam-lhe "bullying". À situação. Eu chamo-lhes tiranetes, aos valentões que são fortes com os fracos e fracos com os fortes. Infelizmente, como vim a constatar, ser um tiranete é coisa que é aprendida logo em tenra idade. Infelizmente também, perceber que o problema maior está nos tiranetes e não nos tiranizados demora muito tempo e requer um exercício continuado de introspecção e auto-aceitação. .De mim, antes do grande embate da escola primária, lembro-me dos tempos em que adorava ir à padaria do bairro onde passávamos as férias de Verão buscar o pão para o pequeno-almoço e de ser uma criança que fazia amizades muito facilmente. Depois, lembro-me de nem sequer querer atender o telefone, com medo de fazer alguma coisa mal e que pudesse ser ridicularizada pelos outros. É entre estes dois pólos que ainda hoje balanço, se bem que, provavelmente, quem não me conheça tão bem possa apenas ter percebido a extroversão, sem se ter apercebido da introversão. Mas que fique bem claro que sim, uma pessoa pode marcar outra pessoa de uma forma tão profunda quanto esta. Que sim, a dor raia o insuportável e permanece sempre connosco. Eu escolhi alimentá-la de forma saudável, com música, retirando dela aquilo de que precisava para o exercício de verter a alma frente a milhares de pessoas. Sei que a mudança que operou em mim foi tão contundente, que hoje seria uma pessoa diferente se nunca a tivesse experimentado. Não me apiedo de mim, nem acho que foi a melhor coisa que me aconteceu. Foi só algo que se passou comigo e com o qual vou ter de lidar para o resto da minha vida. .Mas a verdade é que, prestes a começar novo ano lectivo, não pude deixar de me lembrar da Sara e de mim. Gostaria de acreditar que a vida é como os filmes americanos, cheios de moral, e que por esta altura a pequena valentona já tenha sentido como é estar-se na pele do mais fraco, olhando para aquilo que fez em criança com algum tipo de contrição. Mas, o mais provável é que nem se lembre do tempo em que me infernizava a vida. A ti, Sara, te dedico esta crónica e a todos os que tiveram e têm a sua Sara de «estimação». Porque as nossas Saras de «estimação» são todas iguais, decalcadas umas das outras. Só varia o nome, o sexo e a descrição física. Já a imbecilidade é um atributo que parece repetir-se, tiranete após tiranete. Ah, só uma última confissão, em jeito de catarse: sim, fui eu quem te riscou o desenho todo.