O pior que há é termos a oportunidade de dizer uma coisa, querermos dizê-la, e de nos esquecermos de a dizer. E eu ia dizer aquilo dos carros naquela coisa da Deco. Pior quando são duas as coisas que nos esquecemos de dizer. Aquela coisa da Deco foi uma simpática conferência para onde simpaticamente me convidaram como ser orante, painelista. O nome do painel, Transportes para que Públicos, e os temas eram estes: "A centralidade do cidadão nas decisões estratégicas. Necessidades e propostas. Áreas de melhoria e orçamentos disponíveis. Dificultar a vida aos cidadãos sem alternativas claras. Capacidade financeira das famílias e mobilidade. Novos valores do passe social, reflexo no tráfego rodoviário. O que vai ser o transporte público no futuro"..A minha ideia era simples, dizer duas ou três ideias, pouco mais, porque o painel tinha gente que percebe mais e melhor e há mais tempo de tudo isto, desde o Filipe Moura, do Instituto Superior Técnico e da Deco, o Jorge Bonito Santos da CML ou o Tiago Farias, CEO da Carris e da OTLIS. Para falar do setor estava também o João Reis (das trotinetes) da CIRC (por defeito de formação de fiscalista, CIRC será sempre o Código do Imposto do Rendimento das Pessoas Coletivas, que é como quem diz o Código do IRC, que é como quem diz o IRC)..Toda a discussão sobre transporte público, mobilidade e cidades é porque queremos gente mais feliz, mais feliz porque chega mais depressa e mais barato ao emprego e a casa, gente mais feliz porque espera menos ou espera melhor, gente mais feliz porque respira melhor, tem menos asma, vive mais e melhor. E isso só se consegue com menos carros próprios a entrar na cidade e a ficarem o dia todo a ocupar espaço públicos, parados, ainda por cima a ganhar caganitas de pássaro e pó. Sem menos carros próprios não há mais mobilidade..No painel de quatro, uma pessoa tinha ido de trotineta, outra de Uber, outra de veículo elétrico e outra de autocarro e metro com o cartão Lisboa Viva. Nada disto seria possível há cinco anos, apenas o metro e o autocarro. Os números assustam, temos em Lisboa 500 carros por mil pessoas, um número que cresce desde sempre, e temos também a maior utilização de carro próprio da Europa para entrar na cidade e, correspondentemente e até há bem pouco tempo, uma descida vertiginosa de utilização de transporte público - em 2017 metade das pessoas do que tínhamos em 1991. Os novos passes vão mudar isto, e a capacidade em breve acompanhará a subida da procura. Mas o que é necessário é que se encontre forma de articular e flexibilizar..Articular o que é público com o que é privado. As pessoas não querem um passe de autocarro, nem o L123 nem o Viva, o que as pessoas querem é ir de A a B. E querem ir de A a B através de uma rede de opções (isto também é a Cidade Invisível do Mumford?), onde têm de entrar os TVDE, o car sharing, as bicicletas, trotinetas e mais as etas que venham surgir, mononetas, flyonetas, o que seja. E com flexibilidade, os orçamentos de mobilidade das famílias vistos como um todo..E já me ia esquecendo outra vez das duas coisas que queria ter dito e não disse. Uma delas é que temos de andar mais a pé e tornar a cidade mais andável e isso seria uma boa homenagem ao sítio onde estávamos. Estávamos no Pavilhão Carlos Lopes, numa sala ao fundo, e eu no palco estava mesmo de frente para os ténis do campeão (aqueles que estão na mão dele naquela foto icónica?). Transformar a cidade mais andável, menos guiável é uma maratona, mas tem de se começar ontem. Carlos Lopes cortou a meta em Los Angeles 1984, mas hoje a meta lá na cidade dos anjos é gastarem 120 biliões em 40 anos a renovar e a expandir o transporte público. Mas estudos que têm sido feitos sobre quem votou nesta medida (que consigna receita do imposto de vendas) não são as pessoas que vão andar nos transportes. E isto apenas para mostrar que a revolução na mobilidade das cidades tem de ser mais vasta, mais cultural, e fazer que não sejam mudanças para melhorar a vida dos outros, mas mudanças para melhorar a nossa vida. E essa mudança implica ver a cidade como um todo e o espaço como verdadeiramente público. E isto não é fácil. Mas é possível..Advogado