Cogumelos mágicos e MDMA já tratam depressão e SPT. Psiquiatras falam em terapia do futuro
O que têm em comum substâncias como Psilocibina (conhecida como cogumelos mágicos), MDMA (ou ecstasy) Dietilamida- LSD (ou ácido) ou Quetamina (Special K ou Vitamina K)? São todas substâncias psicotrópicas identificadas na ciência como psicadélicos. Algumas naturais, outras surgiram em laboratório a meio do século XX, mas acabaram por saltar para as ruas para serem consumidas de forma recreativa, desviando assim o efeito terapêutico que os cientistas pretendiam. Mas a ciência não desistiu destas substâncias e anos mais tarde voltou a investigar o seu efeito terapêutico em doenças do foro psiquiátrico. No virar deste século, volta a falar-se da era do renascimento dos psicadélicos. Desta vez, como terapia alternativa para o futuro na Saúde Mental.
No presente, já há países que estão a aprovar o seu uso na legislação. A Austrália foi o primeiro a classificar os psicadélicos como "medicamento nacional", a lei entrou em vigor no dia 1de julho o uso da Psilocibina (cogumelos mágicos) em ambiente hospitalar ou em clínicas privadas para tratar depressões resistentes à medicação e do MDMA (ecstasy), em comprimido, para o transtorno do Stress Pós-Traumático (SPT).
No primeiro dia de janeiro de 2023, o Estado do Oregon, nos Estados Unidos da América, foi o primeiro dos 50 a legalizar a Psilocibina como terapêutica para a Saúde Mental, também com a indicação de tratamento de depressões graves, SPT, ansiedade de doentes terminais e transtorno do alcoolismo - esta última por considerar que há evidência científica, partindo de um estudo que demonstrou que doses deste psicadélico combinadas com terapia levaram 83% dos pacientes a diminuir o consumo excessivo do álcool e quase metade a parar de beber ao fim de oito meses, mas os benefícios a longo prazo ainda não são claros.
O organismo regulador do medicamento dos EUA, Food Drugs and Administration (FDA), tem vindo a discutir o uso dos psicadélicos clássicos e tudo indica que o poderá aprovar em breve. A Suíça já trabalha com estas substâncias, sobretudo com a Psilocibina e a MDMA.
"Faz o chamado uso compassivo. O psiquiatra percebe que o uso de uma destas substâncias pode ter um efeito vantajoso no seu doente e faz um pedido oficial para as poder usar como tratamento", explica ao DN a psiquiatra Inês Carmo Figueiredo, que, juntamente com dois outros colegas, Mafalda Corvacho e Pedro Mota, assina o livro "Psicadélicos em Saúde Mental", com o qual pretendem trazer mais literacia à população e aos próprios técnicos de saúde para que o tema seja mais investigado e debatido.
A obra, segundo destaca a psiquiatra, "surgiu de uma imensa curiosidade e de um interesse genuíno sobre o mundo dos psicadélicos, que quisemos condensar para dar às pessoas um panorama mais abrangente". São 312 páginas com prefácio de Maria Luísa Figueira (psiquiatra e académica conhecida pela sua investigação em psicopatologia clínica e experimental e psicofarmacologia, particularmente em relação às perturbações bipolares e esquizofrenia) e de Maria João Heitor (psiquiatra, diretora do Serviço de Psiquiatria do Hospital Beatriz Ângelo, doutoranda em Medicina, especialidade de Medicina Preventiva e Saúde Pública, e investigadora no ISAMB-FMUL).
Mas a informação recolhida no livro vai desde os primórdios de cada uma destas substâncias, de onde provém e como eram usadas, até às investigações nas décadas de 1950 e 1960, do uso recreativa à proibição, das investigações mais recentes à evidência científica conseguida. Só que para alargar o debate, "chamámos muitas outras pessoas de várias áreas, como das questões legais, para falarmos sobre o assunto".
Inês Carmo Figueiredo, tal como os outros co-autores, acredita que os psicadélicos clássicos podem ser uma terapia do futuro para a Saúde Mental. "São substâncias que continuam a ser investigadas, experimentadas e com resultados divulgados consecutivamente. E no presente, já há países a aprovar o seu uso. A Austrália já o fez e os EUA estão em vias de o fazer. Portanto, é importante que outros países debatam pelo menos a terapia. Em Portugal, começou-se muito recentemente, mas gostaríamos que o debate fosse abrangente e polarizado, com proponentes máximos da terapia e com quem está contra ou com dúvidas."
A médica conta ao DN que no nosso país já há unidades do Serviço Nacional de Saúde (SNS) e clínicas privadas a usar algumas substâncias no tratamento de doentes específicos. Por exemplo, "a Quetamina, que tal como o MDMA, é designada como um psicadélico atípico, está a ser usada para tratar a depressão resistente, tanto em contexto de protocolos em unidades do SNS - no Hospital Beatriz Ângelo (Loures) ou o Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa, mas há outros hospitais em vias de conseguir protocolos semelhantes para os seus doentes - como em contexto de clínicas privadas".
Os três psiquiatras, Inês Carmo Figueiredo, Mafalda Corvacho e Pedro Mota, integram a Sociedade Portuguesa de Aplicação Clínica de Enteógenos (SPACE), que também já "está a preparar um manual de boas práticas para o uso clínico destas substâncias", refere, explicando o porquê: "Uma das críticas feitas a esta terapêutica é a não existência de consenso sobre como devem ser aplicadas de forma segura. E este é outro passo a que nos estamos a dedicar atualmente."
A psiquiatra especifica que no nosso país "só se está a usar a Quetamina e maioritariamente para a depressão resistente", reconhecendo que ainda existe alguma resistência entre os profissionais, a qual, sublinha, "é compreensível em parte, porque muitas destas substâncias carregam um certo estigma e ao mesmo tempo ainda há algum desconhecimento sobre os seus efeitos como terapêutica".
Por exemplo, salienta, "no caso da Quetamina existem estudos, mas ainda é uma intervenção "off label", o que quer dizer que se considera que existe evidência científica que apoia o seu uso, mas ainda necessita de mais investigação. "
Por outro lado, também há alguma resistência porque são, de facto, substâncias que provocam alterações profundas na perceção e na cognição, alterações subjetivas, que são diferentes pela experiência de cada pessoa", mas, por isto mesmo, "é uma terapia que só pode ser feita por profissionais que estejam devidamente preparados para lidar com este tipo de intervenção - que, além da formação em Saúde Mental, estudem estas substâncias".
Todas estas questões, dúvidas e até já evidências científicas sustentam a existência de "um debate abrangente sobre os psicadélicos", argumenta a psiquiatra. "É isso que estamos a tentar fazer na SPACE, promovendo a investigação e a literatura sobre este tipo de intervenção", porque, defende, "esta é a melhor forma de não se excluir uma intervenção que pode ser segura e com benefícios para alguns doentes da Saúde Mental. Não será para todos, mas para alguns, e isso já é importante".
No entanto, se há algo que está desde já definido é que não é uma terapêutica para todos os doentes e que nem pode ser feita em qualquer momento do tratamento. "Há um guia de atuação", diz.
E este alerta serve para explicar que, "em relação à depressão, há pessoas que nos chegam aos consultórios já a falar da terapia e a achar que esta as pode curar completamente. Não é assim. É uma técnica terapêutica que não pode ser usada em todas as pessoas e nem aplicada em qualquer altura do tratamento. A Quetamina, como a Psilocibina, são substâncias que têm sido estudadas principalmente para a depressão dita resistente, aquela em que falharam outras intervenções terapêuticas. Até se chegar ao uso dos psicadélicos tem de se tentar outras técnicas e perceber se o próprio doente tem um perfil psicológico indicado para receber este tratamento".
Inês Carmo Figueiredo destaca ser importante que se perceba que este tipo de terapêutica não é para todos os doentes, mas apenas para um grupo bem selecionado e que só tem vantagens se for feita associada ao apoio psicológico e em ambiente hospitalar, clínicas e consultórios. "É uma intervenção que não pode migrar para um ambiente descontrolado", sublinha.
Porquê? Precisamente porque estamos a falar de "substâncias que causam alterações profundas na perceção e na cognição. Portanto, antes de se iniciar o tratamento têm de ser asseguradas uma série de condições que permitam que a sua aplicação seja feita em segurança - por exemplo, o doente não deve estar numa altura de crise e é fundamental que a sua aplicação seja num ambiente em que os efeitos possam ser controlados, para que, se houver alguma alteração no comportamento do doente, pois este não está no seu estado habitual de consciência, não se coloque a ele próprio em perigo". Embora, ressalve, exista "uma investigação interessante sobre o número de fatalidades cometidas pelo consumo de substâncias em que os psicadélicos clássicos estão no final da lista".
A médica afirma que os primeiros estudos realizados serviram para responder a uma questão. Será esta uma intervenção segura? E, de facto, "parece ser uma intervenção segura, mas, como já referi, para um grupo de doentes selecionado. Por exemplo, são excluídas pessoas com antecedentes de psicose". Depois, os estudos seguintes dirigiram-se à eficácia e, neste aspeto, "têm aparecido resultados interessantes em termos de melhoria de sintomas depressivos ou de SPT quando são usadas substâncias como a Psilocibina, MDMA ou LSD".
Para Inês Carmo Figueiredo a terapia de que agora se fala "é uma terapia diferente, porque conjuga a administração de uma substância que produz alterações do estado consciente combinada com suporte psicológico". Fala mesmo numa "terapia experiencial", porque "vai muito para a experiência subjetiva de cada pessoa quando está sob o efeito da Quetamina. É uma espécie de experiência na primeira pessoa. Não é só a pessoa a falar com o terapeuta sobre as coisas. É a pessoa a viver ela própria uma experiência naquele momento, que pode ser muito importante para o seu processo terapêutico".
E é neste aspeto que considera que estamos perante "uma terapia muito diferente das que usamos na psiquiatria, porque habitualmente damos uma medicação, que tem efeitos secundários, mas que não tem efeitos subjectivos. Não provoca uma alteração do estado consciente. Se um doente toma Sertralina ou Fluoxetina não vai sentir coisas diferentes durante uma hora ou duas e estas substâncias permitem essa experiência, portanto acho que é uma perspetiva interessante especialmente para as pessoas com depressão há meses ou há anos e que não são capazes de sentir prazer ou de pensar nas coisas de forma diferente".
À pergunta do que falamos quando se fala em psicadélicos clássicos, que é os que estão em causa neste tipo de terapêutica, Inês Carmo Figueiredo explica: "Falamos de um grupo abrangente de substâncias que partilham características semelhantes. Provocam uma alteração profunda, embora transitória, do atual estado de consciência, manifestando conteúdos da mente que não são conteúdos acessíveis no nosso estado habitual de consciência, o chamado estado de vigília, podendo às vezes assemelhar-se ao que acontece noutros estados de consciência, como num sonho".
Estas substâncias foram cunhadas de psicadélicos por um psiquiatra, Humphry Osmond, em correspondência com o escritor Aldous Huxley, "precisamente por significar o "manifestar da mente"". Mas tanto falamos de substâncias naturais e vegetais como químicas. Por exemplo, a Psilocibina (cogumelos mágicos), é uma substância natural da América Central e Latina, que era usada com propósitos de cura e em rituais, mas que acabou por vir parar à América do Norte e à Europa.
Em relação à LSD a sua história é um pouco diferente. "Começou por ser trabalhada em laboratório quando os cientistas procuravam uma molécula anticoagulante, quando perceberam que esta não funcionava para esse feito, o cientista Albert Hofmann (suíço e conhecido como o pai da LSD), diz ao mundo da psiquiatria e da neurologia para a estudarem, porque pode ter interesse. Só que a molécula saiu do laboratório e foi parar às ruas, passando a ser uma substância de uso recreativo" e acabou por ser proibida.
Os estudos sobre os seus efeitos pararam, mas há uns anos a comunidade científica retomou as investigações e volta a falar-se da LSD. O MDMA e a Quetamina são substâncias integradas nos psicadélicos, mas não são propriamente do grupo dos clássicos, "têm potencial aditivo diferente dos psicadélicos clássicos em contexto recreativo, mas têm sido investigadas para perturbações psiquiátricas. O MDMA está na frente de um processo de regulamentação para o Stress Pós-Traumático", destaca a psiquiatra.
O debate já começou em muitos países. Psiquiatras portugueses querem que este aconteça também em Portugal. O futuro dirá se os psicadélicos se afirmam como terapia do futuro para a Saúde Mental.
Mais de 300 milhões
A Organização Mundial da Saúde (OMS) dava conta no último relatório sobre Saúde Mental (2017) que mais de 300 milhões de pessoas em todo o mundo sofriam de depressão, o equivalente a 4,4% da população mundial registando-se um número quase igual das que sofriam de algum tipo de perturbação de ansiedade. A OMS classifica a depressão como o maior "contribuinte da incapacidade para a atividade produtiva" e como "a entidade que mais contribui para as mortes por suicídio, que chegam a quase 800 mil por ano no mundo".
5.º país com mais depressão
Em Portugal, o relatório do "Programa Nacional para a Saúde Mental", publicado pela Direção-Geral da Saúde, também em 2017, indicava que 21% da população sofria de alguma perturbação de ansiedade e que 17% sofria de depressão. Destas, um terço correspondem a depressões resistentes. As perturbações mentais e do comportamento têm assim um peso significativo no total de anos de vida saudável perdidos, representando 20,55% do total de anos vividos com incapacidade. Mas o mesmo relatório revela ainda que 11% da população irá sofrer um episódio depressivo ao longo da vida e que esta é a segunda maior causa de incapacidade. Portugal ocupa a 5ª posição entre os países com mais casos de depressão.