Coerência e racionalidade
Coerência e racionalidade na organização do Estado, para a concretização das responsabilidades nacionais no que hoje se pode designar por governação dos mares, não são atributos a que se esteja a prestar a atenção a que os portugueses têm direito. Falo tanto da dimensão externa, sob o estatuto de País consciente do seu papel perante a comunidade internacional, como no que respeita à obrigação de proteção dos nossos interesses económicos e de segurança.
O défice desses atributos é antigo - no passado recente, iniciou-se com a criação da Unidade de Controlo Costeiro (UCC) da GNR - mas tem-se agravado ultimamente ao ponto de entrar num campo que, potencialmente, entra em conflito com o que a própria lei define. O que salta à vista, em primeira instância neste momento, é a contradição que existe no que estabelece a lei sobre as competências da GNR no mar - limitadas ao mar territorial - e a aquisição de um navio com capacidade oceânica!
Aparentemente, não há para o MAI qualquer problema. O que quer que diga a lei - deduz-se da decisão e respetiva argumentação - o que importa é não deixar de aproveitar verbas que a UE disponibiliza através dos fundos de segurança interna, verbas que cobrirão 75% dos investimentos e a que a GNR tem acesso, mas a Marinha não.
Se existem ou não outras prioridades mais urgentes para usar os 25% que cabe ao Estado Português pagar (8,7 milhões de euros) parece também não importar. Não obstante se saiba que as Forças Armadas - neste particular, a Marinha - lutam com dificuldades muito graves para garantir que os meios, que foi decido adquirir, são mantidos em condições de utilização. Ou que, em alternativa, se resolvam os défices que afetam a missão principal da GNR no campo da segurança pessoal.
Se a decisão faz ou não sentido, à luz do conceito de "marinha de duplo uso", que está instituído na lei, também não parece ser relevante, malgrado a Marinha, na sequência desse conceito, dedique 75% dos seus meios às chamadas missões de interesse público, em que se inclui a fiscalização dos espaços marítimos sob soberania ou jurisdição nacional. Que lógica tem vir agora a GNR entrar no dispositivo oceânico com um meio cujo estatuto, em relação à coordenação do Sistema Europeu de Vigilância de Fronteiras, ainda não foi sequer abordado publicamente, muito menos explicado? Afinal, em que vai resultar a operação deste novo meio? Num reforço do dispositivo ou em novas necessidades de coordenação para garantir unidade de ação e evitar interferências mútuas?
Se os recursos financeiros do País comportam a existência paralela de uma Marinha e de uma Guarda Costeira - estatuto para que inequivocamente tenta evoluir a UCC - devia ser uma questão central que exige transparência e uma firme linha de ação que deixe a claro, sem margens para especulação, uma opção que ponha termo ao que vi, recentemente, chamar "estratégias em colisão" (Marinha e GNR).
Esta expressão não é aceitável. Por uma simples razão. A Marinha, limitando-se a fazer o que a lei lhe determina, não está a seguir qualquer estratégia própria. Quem o está a fazer é a GNR que, não contente com as atribuições que tem no mar territorial, quer alargar o seu campo de ação para a área oceânica, sob circunstâncias questionáveis. Primeiro, dando prioridade à cooperação com as organizações externas, nomeadamente, a do País vizinho, em detrimento da cooperação interna, requisito para que não se tem mostrado disponível. Segundo, ignorando que as organizações precisam de um mínimo de massa crítica para conseguir uma gestão sensata entre o dispositivo operacional e o dispositivo de apoio.
Se esta estratégia faz sentido ou, pelo menos tem razoabilidade, não parece preocupar os respetivos responsáveis. Se fizesse sentido não poderíamos deixar de reconhecer que seria aplicável a outras instituições com necessidades de intervenção no domínio marítimo, de segurança ou não - como é caso da Polícia Judiciária. Esta, no entanto, aposta na colaboração que lhe garanta acesso aos meios das Forças Armadas de que possa precisar, em vez de se envolver nas complicações da posse de meios próprios que já existem noutras organizações.
Em alternativa, a GNR prefere adotar um caminho diferente, aquilo que os anglo-saxónicos designam por estratégia "can do", disponibilizando-se para aceitar qualquer missão, mesmo fora do seu quadro normal de atuação. Compreende-se a atração pelo alargamento sucessivo das áreas de responsabilidade. O que não se compreende é que isso seja feito contra os mais elementares princípios de racionalidade e coerência, nalgumas vertentes mesmo contra a lei. Sendo manifesto o défice de recursos, principalmente humanos, na missão principal de garantir a segurança direta das populações, não se percebe como conciliar essa realidade com a dispersão de meios por novas e exigentes responsabilidades, entrando em competição, sem as devidas bases, com competências e tradições reconhecidas noutras instituições, neste caso a Marinha.
Vice-almirante, ex-vice-chefe do Estado-Maior da Armada