Clérigos. O Porto à noite, a 76 metros do chão
"Que vistas fantásticas. Daqui só não conseguimos ver uma coisa: a Torre", constata António Cunha. Assim é. Só falta a própria Torre. De resto, está o Porto quase todo diante dos olhos, vestido de negro por entre as luzes que lhe projetam o perfil elegante, capaz de fazer suster a respiração. À volta, lá em baixo, nas ruas que serviram de berço à renovação da cidade na última década, corre o frenesim do costume numa noite quente de verão. Mas aqui em cima, a 76 metros do chão, o Porto é um postal tranquilo. O único desassossego é o do olhar, ávido por alcançar toda a cidade, neste que é, seguramente, o seu miradouro mais abrangente.
Se o Porto ganhou nos anos recentes uma nova movida que o colocou nos primeiros lugares dos rankings de quase tudo o que são publicações de viagens, a Torre dos Clérigos mantém a reputação como um ex-líbris da sua oferta turística. E, no âmbito das comemorações dos seus 250 anos, sentiu também ela (a Irmandade dos Clérigos, que a gere) necessidade de se reinventar para acompanhar o ritmo e as maiores exigências da nova dinâmica cultural da cidade. Por isso, durante quase um ano, em 2014, o monumento sofreu grandes obras de restauro nos seus vários espaços, da Igreja à Torre, passando pelo espólio de arte sacra, de forma a se adaptar melhor às novas tendências.
Os números dão dimensão à obra: foram intervencionados 4500 metros quadrados, instalados 13 km de cabos elétricos, gastos 60 kg de algodão, 140 mil folhas de ouro na igreja... Precisamente 252 anos depois de abrir portas pela primeira vez, a "nova" Torre dos Clérigos mostrou-se ao público a 12 de dezembro do ano passado. Apesar da igreja renovada e dos novos espaços museológicos, continua a ser, naturalmente, a subida ao topo da Torre o motivo mais popular de atração. Mesmo se é preciso, para lá chegar, subir a pé os 197 degraus (225 se for desde a igreja, 240 desde a capela) que nos levam da bilheteira até lá acima por uma apertada escadaria em caracol.
Este verão, pela primeira vez, a Irmandade dos Clérigos decidiu também abrir a Torre à noite, até ao próximo dia 15 de setembro, diversificando a paisagem oferecida por este que foi durante muito tempo o edifício mais alto de Portugal. Quem fizer a visita ao final da tarde, pode contemplar ainda o sol a recolher-se ao longe, na Foz, nos dias soalheiros; quem preferir a noite, vê a cidade iluminada por um jogo de luzes que se estende para lá do rio, até à outra margem (Gaia), onde a Serra do Pilar "acena" como outro dos miradouros mais populares do Grande Porto.
Mas não se ficou por aqui a Irmandade, presidida pelo padre Américo Aguiar, nas ofertas de verão. Promoveu também visitas guiadas noturnas, para grupos de 25 ou mais pessoas, que incluem incursões à Igreja e às áreas de museu. Foi numa dessas visitas que António Cunha, de 37 anos, experimentou o Porto à noite visto da Torre dos Clérigos. É a segunda vez que visita o edifício, mas a primeira sob o brilho das estrelas e das luzes artificiais que projetam o cenário. E não tem dúvidas: "Corresponde inteiramente às expectativas. É uma vista fabulosa. O bar do hotel D. Henrique, no último andar, também tem uma vista espetacular. Mas esta é especial", refere, apontando-lhe então o único senão com que se inicia este texto: "Daqui, só não vemos a própria Torre."
Exemplo icónico da arquitetura barroca que transformou a cidade no século XVIII, com assinatura do arquiteto italiano Nicolau Nasoni, e considerado desde 1910 monumento nacional, a Torre dos Clérigos continua, pois, um ponto de referência obrigatório na oferta turística do Porto. Tal como em tempos foi ponto de referência obrigatório para todas as embarcações que se aproximavam da barra do Douro, como se de um farol se tratasse.
A escalada dos Puertollano
Aliás, a Torre, que levou 14 anos a ser construída, entre 1749 e 1763, assumiu várias funções ao longo da sua existência. Era o seu relógio que marcava a hora oficial da cidade, por exemplo. E sem que fosse preciso sequer olhar para os ponteiros, graças à meridiana, um engenho com uma pistola acionada pela luz solar que disparava religiosamente ao meio-dia, servindo para assinalar a hora de fecho aos comerciantes.
Serviu também, a Torre, de emissor de telégrafo, de cenário de filmes, de ponto estratégico para combates militares e políticos e até de palco para aventuras radicais, como a que protagonizaram os galegos Puertollano, pai e filho, em 1917, quando escalaram o edifício até à cruz que encima a torre e, lá no alto, após uma série de acrobacias, deleitaram-se com chá e bolachinhas, numa ação publicitária promovida por uma fábrica de bolachas - a iniciativa está, de resto, retratada num documentário de Raul de Caldevilla, disponível na Cinemateca Portuguesa.
Algumas destas e de outras histórias são-nos contadas nestas visitas de grupo guiadas, de cerca de uma hora, promovidas pela Irmandade dos Clérigos. O "Clérigos fora de horas" contempla três horários: 19.15, que permite terminar a visita com a experiência do pôr do Sol lá no alto da torre; 21.30 e 22.30, estas finalizadas com as vistas noturnas da cidade.
A Burra e o escritório de Nasoni
A nossa guia, Andreia Machado, que há três anos trabalha na Irmandade, conta que a ideia das visitas é "despertar a atenção das pessoas também para a oferta museológica dos Clérigos e não apenas para a Torre, que é naturalmente o ex-líbris". A visita dura cerca de uma hora e divide-se em três partes, tantas quantos os edifícios que compõem o monumento: entre a igreja e a Torre há uma área aberta ao público pela primeira vez em dois séculos, três pisos que compõem o bloco central, onde funcionaram serviços administrativos ou uma enfermaria, e que agora estão reconvertidos em espaços de museu. Ali estão expostas peças relevantes da vida no edifício ao longo dos tempos. Como a Burra, uma arca que guardava as riquezas mais valiosas e que só abria com três chaves em simultâneo: a do presidente da Irmandade, a do tesoureiro e a do secretário. Podemos visitar também o escritório de Nicolau Nasoni, ainda com a secretária onde o arquiteto terá trabalhado. Ou ainda o salão nobre da Irmandade, que se mantém igual ao original. A antiga enfermaria acolhe agora uma vasta coleção de figuras de Cristos, um espólio doado por António Miranda, um benemérito de Baião.
A ligação entre os pisos vai-se fazendo pelos corredores estreitos que circundam o interior do edifício, quase como se de passagens secretas se tratassem. E que di-ficultaram a visita a Armanda Abrantes. Claustrofóbica, ainda resistiu estoicamente aos corredores. Mas já não conseguiu cumprir a última etapa da visita: a tão ansiada subida ao cimo da Torre. "Depois vejo as fotos", diz esta gaiense de 60 anos, que ainda assim regressa a casa feliz: "Foi a primeira vez que visitei a Torre dos Clérigos e adorei o que vi."
Começam-se então a contar os degraus, rumo ao topo, em espiral, até encontrar a tão ambicionada panorâmica. António Cunha e um amigo, Pedro, vão tentando encontrar no horizonte os outros edifícios marcantes da cidade. À noite, a identificação obriga a um esforço adicional, com o efeito das luzes que se cruzam diante do olhar. Mas a toda a volta foram afixados painéis gráficos de leitura da paisagem para ajudar a descobrir os outros pontos de referência de um Porto que se espalha a toda a volta, até se perder de vista.
É o que tentam perceber Grainne Brady e a irmã, Geraldine, duas irlandesas de Dublin que reservaram a subida à Torre dos Clérigos para a última das 11 noites de estada no Porto. Daqui veem quase tudo o que visitaram. Sejam as "Galerias de Paris", aqui ao lado, epicentro da movida, "a Sé", ou a Ribeira, que na voz de Grainne soa a "Riviera". Foi aliás a "Riviera" o que mais as conquistou. "Definitivamente." Guardaram o último fôlego das férias para a subida à Torre. "200 degraus, pelo que li. Não contei. Mas não é cansativo. E vale a pena, porque esta paisagem, sim, é de cortar a respiração", diz. "Acho que é uma boa imagem final para levar para casa."
Carpinteiro José pode ter desfeito o mistério sobre corpo de Nasoni
No último dia de quase um ano de trabalhos que duraram as obras de renovação dos Clérigos, em 2014, uma descoberta fortuita deixou a Irmandade em alvoroço. Ao levantar um pedaço de madeira do chão da igreja, para colocar um fio elétrico, um carpinteiro destapou a entrada para uma cripta do século XVIII que conservava mais de 20 sepulturas.
Terá finalmente sido encontrado o local onde repousam os restos mortais de Nicolau Nasoni, o arquiteto italiano que assinou o desenho da Igreja e da Torre dos Clérigos? O padre Américo Aguiar, presidente da Irmandade, reforçou a fé na descoberta. Entusiasmado perante a possibilidade, perguntou o nome ao carpinteiro. "José", ouviu. "Só podia ser", reagiu o pároco, esperançado em ver desfeito o mistério secular.
Nasoni veio para Portugal em 1725 para trabalhar na recuperação e decoração da capela-mor da Sé do Porto. Em 1731, o arquiteto italiano foi convidado para conceber o projeto dos Clérigos (igreja e torre) que se tornou na sua obra mais emblemática, monumento maior do estilo barroco que Nasoni espalhou pela cidade nesse século XVIII, com intervenções em vários outros edifícios.
Do italiano sabe-se ainda que se tornou um irmão leigo da Irmandade dos Clérigos, que casou por duas vezes no Porto, que trabalhou de graça nos Clérigos e que quando morreu, pobre, com 82 anos, a 30 de agosto de 1773, dez anos depois de ter concluído a Torre dos Clérigos, quis ser sepultado na igreja. Durante cerca de 200 anos não se soube exatamente onde. Agora, pode ter sido descoberto.
Para já, dos 28 corpos encontrados por baixo da cripta, uma equipa de antropologia forense da Universidade de Coimbra, liderada pela investigadora Eugénia Cunha, reduziu a possibilidade a quatro, que correspondiam a homens com mais de 60 anos. Essas ossadas foram enviadas para laboratórios nos EUA, para análises de carbono 14, e aguardam-se resultados ao mesmo tempo que se procuram ascendentes e descendentes do arquiteto italiano para comparação de ADN. Só assim se poderá confirmar se o carpinteiro José descobriu o corpo de Nasoni.