Cláudia Morais: "São ambientes onde há muitas discussões"
Que implicações familiares tem o consumo excessivo de álcool?
Implica sempre algum tipo de desorganização familiar, que as responsabilidades parentais nem sempre sejam asseguradas, sobretudo quando não é apenas um dos progenitores o alcoólico. Mas mesmo quando é apenas um, há quase sempre algum tipo de desorganização. Não raras vezes, os filhos têm de assumir responsabilidades que tradicionalmente não são das crianças ou dos adolescentes. Há outras, que têm a ver com o desenvolvimento emocional dos filhos, na medida em que falamos quase sempre de relações problemáticas entre os progenitores. São ambientes familiares marcados por muitas discussões, na maior parte das vezes por múltiplas formas de violência. Há, ainda, questões relacionadas com a exposição da família, a vergonha.
No consultório, é procurada por adultos que referem ter tido pais alcoólicos?
Quando estas pessoas pedem ajuda, nem sempre fazem a associação a estes acontecimentos. De uma maneira geral, tendem a pedir ajuda em função dos problemas pelos quais estão a passar neste momento. Se se sentem deprimidas, muito ansiosas, com a sua vida familiar caótica, pedem ajuda psicológica para dar resposta às dificuldades que sentem. Muitas vezes não há, numa primeira consulta, até a consciência do impacto destes acontecimentos na atualidade. Uma pessoa com sinais de depressão nem sempre percebe que isso pode ser uma consequência do que passou ao longo da infância e da adolescência.
E que impacto é esse?
Em primeiro lugar, tem a ver com o humor depressivo, sinais claros de depressão. Tem a ver com níveis de ansiedade muito elevados, de pessoas que se habituaram a um estado de vigilância permanente, muito atentas ao que possa correr mal. São também pessoas com grandes dificuldades em confiar, o que também é visível nas suas relações amorosas. São adultos com mais dificuldade em criar laços afetivos estáveis. Por outro lado, também podem ser pessoas que, uma vez estando numa relação, sejam potenciais vítimas, na medida em que se apegam de uma forma disfuncional, em função do passado, do que tomaram por normal.
Há traumas associados?
Sim. Estamos quase sempre a falar de pessoas com algum tipo de trauma. Muitas vezes, aquilo que acontece é que a sintomatologia deste trauma aparece numa altura em que, teoricamente, até estaria tudo bem. É muitas vezes assim com o stress pós-traumático. O trauma está associado a acontecimentos da infância e da adolescência, mas os sinais, nomeadamente a agitação e o humor depressivo, só surgem muito mais tarde. Ao fazer a história de vida do paciente percebemos isso. Por vezes, os níveis de ansiedade acabam por se traduzir na dor física. Não quer dizer que estas características envolvam todos os adultos. Por vezes há também tendência para o isolamento e sentimentos de culpa, que não têm uma fundamentação. Estão relacionados com a tristeza associada ao rumo das vidas dos progenitores. Isso faz que um adulto que cresceu com pais alcoólicos muitas vezes não seja capaz de experimentar a sua própria felicidade.
A vergonha mantém-se na idade adulta?
É um sentimento que se pode estender, enraizar. Muitas vezes, aquela criança, mais tarde adulto, olha para si permanentemente com vergonha, como se fosse inferior aos outros, mesmo que nada o justifique.
O facto de o álcool ser socialmente aceite leva a que haja situações camufladas e que as crianças não tenham o devido apoio?
Muitas. Mesmo que não centremos apenas nos adultos que abusam do álcool, há casos em que a associação não é feita. Muitas vezes a disfunção sexual está associada ao consumo excessivo de álcool, e quando um dos membros do casal pede ajuda, está muito longe de imaginar que essa possa ser a origem. Como a pessoa não anda alcoolizada no trabalho não consegue olhar para si mesmo como um alcoólico, ainda que precise de consumir álcool todos os dias.