Clara Ferreira Alves: "Resignação portuguesa resvala na cobardia"

A cultura americana sempre fascinou Clara Ferreira Alves. Fitzgerald, Steinbeck ou Bellow são escritores que a atraem, já Elena Ferrante é pouco interessante
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Clara Ferreira Alves tem viajado muito pelos Estados Unidos e era-lhe impossível não registar em livro essa experiência em mais de 400 páginas de Cenas da Vida Americana - de Reagan a Trump. Mas poderia somar um milhar, ou seja muitas das suas reportagens ficaram de fora. Nesta conversa fica-se a saber que está a escrever um novo romance, passado em Portugal e com protagonistas nacionais dos anos 50, no seguimento da pergunta sobre se um dia escreverá Cenas da Vida Portuguesa: "Já o faço na televisão semanalmente. Quanto ao romance, avanço que decorre no meio do século XX. O que posso dizer, no entanto, é que ando a tentar perceber Portugal há muitos anos e ainda não consegui. É um país estranho, mesmo que seja o meu e eu intensamente portuguesa, mas causa-me desconforto porque temos a tentação de ser perfeitos." Acrescenta: "Tivemos uns anos difíceis e a troika foi uma humilhação. Principalmente, porque a resignação perante a inevitabilidade, que é tão antiamericana, desespera-me. A resignação portuguesa resvala na cobardia e somos demasiado conformistas. Aceitamos facilmente a regra do outro mesmo que sejamos capazes de grande violência física súbita.

Os leitores interessam-se pelos EUA?

Espero que sim. A América foi sempre um lugar de fascínio porque a vida americana entra-nos pela casa todos os dias. Continuamos a consumir tudo, agora são as séries americanas. Hoje, Scott Fitzgerald estaria a escrever séries em vez de livros - esteve em Hollywood -, tal como o Faulkner - que fazia guiões maravilhosamente incompreensíveis para as adaptações de Raymond Chandler. O House of Cards e o Scandal são como ler um livro, é Macbeth e Shakespeare. As cenas da vida americana fazem parte do nosso quotidiano porque a nossa realidade é muito comezinha, ou seja, é impossível escapar à América. Aliás, estamos mais atentos a ela do que à Europa.

Continuará este livro com Trump?

Só com Trump não... A não ser que ele ficasse oito anos e que durante os dois mandatos acontecessem coisas historicamente importantes além da mera anedota previsível. Aí, responderia que sim. Só que Trump nunca deixará de ser ele próprio, ninguém muda aos 70 anos.

Na contracapa define-o como avatar...

Fala-se do eleitor de Trump como o macho branco zangado, aquela gente que ficou fora da malha do sistema e que tem uma vida difícil, o que nem sempre é verdade porque há muitos eleitores de Trump com bons rendimentos. Foi uma ficção que se criou. É um país onde todos são quantificados antes de serem qualificados, medidos pelo sucesso faturável. Quanto fatura? é uma pergunta que se faz muito na América e que não é embaraçosa como em Lisboa porque lá o sucesso é a única carreira possível.

Mesmo com muitos fracassados?

Há muita gente que fica fora da teia do sucesso e não têm contemplação na sociedade americana. Quando os americanos têm um revés dizem "agora vou recomeçar e ter sucesso desta vez. Essa indústria do auto aperfeiçoamento é o que faz viver a América e a fonte da grande energia liberal. Os pobres não aparecem no cinema americano, só no Festival de Sundance, porque ninguém vai ver um filme sobre pobreza americana.

O que lhe interessa mais nos EUA?

No princípio era o cinema e a literatura. Os escritores americanos clássicos foram o início, de Melville até a Saul Bellow. Era um mundo muito diferente do nosso europeu e do português. Para mim a Elena Ferrante é um mundo que eu conheço bem demais, seja a pobreza de Nápoles, seja aquele tipo de universo feminino, que não tem elemento algum de exótico. O mundo americano interessava-me, bastava ter lido o Terna É a Noite ou O Grande Gatsby ! Fazia-me sonhar, ler Fitzgerald tirava-me do meu canto de criança solitária. Depois, foi o mundo de As Vinhas da Ira do Steinbeck, seguiu-se o universo dos judeus pobres de Chicago pelo Saul Bellow. O cinema, com Bogart ou Dashiell Hammett, não fez perder esse fascínio.

Nota-se que de início há muita cultura e depois afunila na política. Porquê?

Um dia quero reunir os meus textos literários - pode ser que ninguém os leia -, mas esta direção política no livro acontece por ter feito a campanha dos Clinton, duas personagens de ficção que engrenam muito bem nas minhas fantasias americanas. De onde é que vem Clinton? Do "lixo branco", e é o primeiro presidente após as dinastias Bush e Kennedy, ou Reagan, que é uma estrela de Hollywood. Clinton tem uma infância modesta e uma ambição desmedida para quem nasce em Hope, no Arkansas. Há uma foto dele a apertar a mão a JFK aos seis anos que diz tudo.

É é o presidente que mais admira?

Clinton é admirável pela travessia e por ter sobrevivido à humilhação daquelas mulheres todas. É-lhe tudo natural, coisa que em Obama não acontece, é mais um grande pregador à maneira dos evangelistas. Não admiro o George W. Bush mas considero o pai Bush um homem de Estado. Admiro o Nixon - sei que é um escroque absoluto - mas tinha uma visão da História e uma sapiência política que Trump não tem.

Já podemos olhar para Richard Nixon de forma mais benévola?

Não precisei de ser benévola pois achei-o sempre um presidente importante. Que herdou o terrível Vietname mas deu um passo fundamental na História da humanidade com a abertura à China. Ir ter com o inimigo! Depois, teve as gravações do Watergate e paranoia final. É um personagem de ficção, que obriga Kissinger a ajoelhar-se na Casa Branca e chora porque percebe que vai perder o poder. Um momento trágico para que Trump não tem escala, afinal é um equívoco da TV e da cultura de celebridades.

Que ganhou à "sua" candidata?

Hoje acho que Bernie Sanders teria ganho, mas considero que Hillary é muito competente e era interessante ter uma mulher na Casa Branca. E poderia ter sido uma boa Presidente se não tivesse sido atraiçoada e vilipendiada de formas cruéis. Também não criou uma ligação afetiva com o eleitorado apesar de ter vencido todos o debates e obter a maioria no voto popular. Ela perdeu o momento porque não estava à vontade no meio das pessoas. Há políticos que adoram o que chamamos em Portugal "banho de multidão", o Mário Soares era assim. Se não tinha pessoas à volta era um sufoco para ele, queria falar e converter inimigos e adversários.

Acha que vamos chegar à indiferença perante tantos atentados terroristas?

Espero que não, mas já chegámos à sentimentalização excessiva, como se os atentados fossem um grande acontecimento emocional. Não quero fazer parte desse jornalismo sugado pelas redes sociais, que oscila entre o ódio e o amor e não há nada no meio, onde estamos todos nós. Por isso é que gosto de ir depois, nunca fui para os sítios quando toda a gente lá estava, à exceção da Guerra do Golfo. É preciso algum recuo.

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