Depois de ouvir, pela segunda vez consecutiva, o nome de Clara Azevedo em consultas de ortopedia, como a cirurgiã especialista que me deveria operar ao ombro, fiquei com curiosidade e pesquisei o nome na net.
Recordo que me chamou a atenção o titular: Médicas do SAMS desenvolvem técnica mundialmente inovadora. Cliquei e li que Clara Azevedo e Ana Catarina Ângelo haviam desenvolvido uma solução menos agressiva para a problemática da rotura da coifa dos rotadores, um dos grupos de músculos mais importantes para a mobilidade do ombro.
Retive a informação e marquei uma consulta, altura em que tive oportunidade de obter mais informação acerca desta técnica. Clara Azevedo contou-me, então, que havia acompanhado, durante anos, doentes com roturas irreparáveis dos tendões da coifa dos rotadores, a quem a ortopedia tinha muito pouco para oferecer de forma segura, algo que a deixava frustrada, porque as lesões nestes músculos tornavam-se muito limitativas para a qualidade de vida dos doentes e porque não era possível controlar os sintomas com medicação.
Como tal, em 2015, decidiu adaptar uma técnica utilizada, dois anos antes, por um ortopedista e investigador japonês, o professor Teruhisa Mihata, que havia publicado os seus resultados clínicos usando uma técnica com uma solução completamente nova para esse tipo de doentes.
Tratava-se de uma técnica artroscópica, em que se operava o ombro através de pequenas incisões milimétricas, mas que utilizava enxerto colhido da coxa do doente através duma grande incisão longitudinal na pele, para reconstruir, depois, a cápsula superior do ombro, permitindo-lhe assim recuperar a estabilidade necessária para poder voltar a levantar o ombro sem dor.
Os resultados para aquele tipo de problema grave do ombro eram aparentemente fabulosos. Mas a especialista estava preocupada com a colheita do enxerto por via aberta, pelo risco de causar desconforto e disfunção numa coxa previamente saudável. E, como tal, decidiu adaptar uma técnica de colheita de fáscia lata feita por via minimamente invasiva da coxa, que tinha sido descrita por colegas otorrinolaringologistas para fazerem rinoplastias, começando a fazer a cirurgia da reconstrução capsular superior artroscópica nos seus doentes, sem necessidade de fazer a colheita por via aberta, descrita pelo professor Mihata.
Com a ajuda de Ana Catarina Ângelo, a sua equipa conseguiu resultados considerados fabulosos neste tipo de doentes. Resultados que foram publicados em revistas médicas internacionais, com arbitragem por pares e de elevado fator de impacto, levando colegas nacionais e internacionais a quererem aprender e utilizar esta técnica.
Dizem que quando se tem a sorte de fazer o que se gosta, tudo corre melhor. Máxima que se aplica a Clara Azevedo, que decidiu ser ortopedista por adorar as aulas desta especialidade na Faculdade de Medicina de Lisboa. Desde pequena que queria ser médica. Aos 4 anos já via programas de televisão sobre intervenções cirúrgicas e ficava fascinada. Aos 8, teve uma doença súbita que a obrigou a estar internada vários dias no Hospital Dona Estefânia, e a experiência reforçou ainda mais esta vontade, por acreditar que poderia vir a marcar a diferença.
Foi uma opção ditada pelo coração, mas que a obrigou a muitos sacrifícios, pois segundo conta, a Medicina é uma ciência em que o saber é tão vasto que quem decide abraçar a profissão tem de passar a vida a estudar. Algo que fez desde criança, abdicando de muitos convívios familiares, sociais e culturais, porque sabia que seria impossível atingir os seus objetivos nesta área sem se dedicar intensivamente a aprender.
Confessa que esta ausência de limites ao conhecimento que o estudo da Medicina exige, lhe causou alguma ansiedade, pois quando era criança e adolescente habituou-se a ter notas sempre elevadas e quando entrou para a Faculdade confrontou-se com a dificuldade de lidar com o infinito.
Um problema, que na sua opinião, é transversal aos estudantes de Medicina, que sendo perfecionistas têm uma vontade insaciável de aprender, até porque sabem que num ponto qualquer do globo alguém pode estar a descobrir uma solução diferente para os milhões de problemas que estão por resolver no tratamento de doentes.
Mas se por um lado esta procura incessante pelo conhecimento lhe trouxe alguma ansiedade, foi também graças a ela que teve as maiores alegrias, como a publicação, em 2018, dos resultados clínicos e radiológicos da técnica cirúrgica que desenvolveu, numa das melhores revistas internacionais de ortopedia, The American Journal of Sports Medicine.
Foi um momento de viragem na sua carreira, não só por ser aquele o trabalho central da sua tese de Doutoramento em Medicina, como também porque lhe permitiu tornar-se, depois, revisora dessa revista, e mais tarde no/a primeiro/a ortopedista português/a a ser convidado/a para o Editorial Board da mesma.
A partir de então tem vindo a divulgar a técnica pelo mundo inteiro, recebendo, também, colegas de outros países que vêm a Portugal exclusivamente para a aprenderem. Os resultados falam por si: já realizou mais de 60 cirurgias, sempre com excelentes resultados, o que tem vindo a despertar o interesse da comunidade internacional.
No início, em 2002, quando começou o internato da especialidade de ortopedia e traumatologia, confessa que existia muita desconfiança, entre os pares, sobre a capacidade de as mulheres serem tão bem-sucedidas quanto os homens nesta profissão.
No entanto, garante, que encarou essa desconfiança como um desafio.
*Autoras do livro Mulheres do Meu País - Século XXI inspirado na obra homónima de Maria Lamas. O livro, que tem design gráfico de Andrea Pahim, está à venda nas livrarias online e no FB.
O DN publica nesta segunda quinzena de agosto uma seleção de 15 perfis de portuguesas notáveis.