Civilizacão

Publicado a
Atualizado a

Goste-se ou não, um cão é civilização. E humana, atenção. A base, naturalmente, flui da Natureza, como a de todos nós, animais. Mas o que vem depois, se o cão é assim ou se é assado, grande ou pequeno, glabro ou felpudo, branquinho ou malhado, tudo isso surgiu da forma como nós o criámos, ao cão, do modo como lhe apurámos o fácies e o porte, como lhe moldámos a aparência, a raça (termo que, por enquanto, ainda se pode aplicar ao cão, a nós é que não, e bem).

É espantoso perceber que as raças caninas são todas, ou quase todas, bem mais recentes do que julgamos. Só nos anos 50, por exemplo, é que ficou a saber-se de ciência certa qual a origem dos Golden Retrievers, um dos canídeos mais populares do planeta.

Corria o ano de 1952, sendo muitos dos leitores destas linhas já nascidos e criados, quando o senhor 6.º conde de Ilchester decidiu publicar nas páginas da Country Life um artigo histórico, imorredouro, saído na edição de 25 de Julho dessa bíblia do snobismo campestre ou, como agora se diz, do agro-betismo.

Nesse artigo bombástico, literalmente seminal, intitulado "The origin of the Golden Retriever", foi deslindado para sempre um mistério colossal, apaixonante, que era o de saber, em direitas contas, se o macho Nous tinha conexão, ou não, com três cãezinhos amarelos comprados em Brighton, em 1868, a um amestrador de circo, cãezinhos esses que, segundo parece, eram russos, da região do Cáucaso.
É possível que alguns dos leitores não tenham alcançado por inteiro a relevância desta magna controvérsia, a um tempo historiográfica e metafísica, e, por isso, algumas luzes: durante muito tempo imperou em vários canis do globo a tese miserabilista de que os Golden Retrievers tinham raízes plebeias, quase circenses, provindo de uma matilha que Sir Dudley Coutts Marjoribanks comprara em Brighton a um artista de variedades e levara para a sua mansão, a Guisachan House, em Glen Affric, nas Terras Altas escocesas.

O dono dessa casa, Sir Dudley Marjoribanks, foi um político e homem de negócios escocês que se sentou durante décadas na House of Commons - de 1853 a 1881 -, até ser tornado barão Tweedmouth, ascendendo então para a Câmara dos Lordes. Sir Dudley enriquecera no ramo cervejeiro, sendo dono da popular Meux Brewery, famosa por, em 1814, ter provocado o famigerado Dilúvio de Cerveja de Londres, quando um dos tonéis da fábrica rebentou, despejando sobre as casas adjacentes qualquer coisa como 610 mil litros do precioso líquido. Em 1868, já barão, promoveu a união carnal entre o macho Nous e a bela Belle, sendo o primeiro um Wavy-Coated Retriever e ela, a Belle, uma Tweed Water Spaniel. Daí nasceram três cachorrinhos - um macho, Crocus, e duas fêmeas, Cowslip e Primrose -, que inauguraram a áurea linhagem dos Golden Retrievers.

Simples, não? Não. É que, como atrás se disse, durante muitos anos foi ventilada a peregrina tese de que Nous era um cão russo, o que, a ser verdade, daria uma origem eslava, oriental, quase criptocomunista, a um pedigree que se reclama retintamente europeu, aristocraticamente britânico - e escocês, das Terras Altas! Foi essa aleivosia que o conde Giles veio impugnar. Pouco depois, Lady Pentland, neta de Sir Dudley, barão Tweedmouth, tornou público o livro de registos das criações de Guisachan, de 1865 a 1890, confirmando que o seu avô, e outros como ele, procuravam de há muito apurar uma raça canídea apta a caçar nos muitos riachos e campos alagados da Escócia chuvosa.

Em meados e finais do século XIX, as espingardas mais modernas permitiram atirar a grandes distâncias, sendo frequente que as avezinhas mortas ficassem perdidas em pântanos traiçoeiros ou em lugares longínquos, inacessíveis. Era essencial, assim, que existisse um cão que as fosse buscar a esses meios lacustres (daí o nome de retriever) e que as trouxesse intactas, sem as esfacelar nas mandíbulas. Fizeram-se cruzamentos, apuramentos, ajuntamentos eróticos que envolveram raças como o Setter Irlandês, o Bloodhound ou o Cão-de-Água de St. Johns, da Terra Nova, sendo este último, segundo dizem, o pai genético de todos os Retrievers do mundo, facto tanto mais curioso - e demonstrativo de que cão é mesmo civilização - quanto soubermos que, nas origens do Cão-de-Água da Terra Nova, esteve o nosso Rafeiro Alentejano, levado para aquelas paisagens gélidas por navegadores e pescadores portugueses desde tempos imemoriais, por volta do século XV.

Em 1902, os Golden Retrievers de Sir Dudley foram registados no The Kennel Club do Reino Unido e, em 1925, no seu congénere norte-americano e, dois anos depois, no Canadá. Os Retrievers desses três países têm características específicas e até aparências distintas, mas mantêm os traços genéticos comuns que singularizam a raça e lhe dão a graça: força e vigor, docilidade extrema, capacidade inata de busca de presas ou objectos distantes, paixão aquática nas raias da loucura, ligação profunda aos seres humanos.

Em Porquê Olhar os Animais?, o ensaísta John Berger afirma que a relação que temos com os bichos e a forma como estes nos observam, e nós a eles, são intrinsecamente distintas do modo como os humanos se relacionam entre si, pois esta última é sempre moldada, quiçá corrompida, pela linguagem. "A linguagem permite que os homens se avaliem uns aos outros como a si mesmos", diz Berger, e, de facto, por muito que falemos com os nossos cães e os nossos gatos, por muito que tentemos adivinhar-lhe os sinais e as mazelas, o sentido dos gestos, por muito que senhoras idosas e cavalheiros solitários mantenham longas conversações com as suas estimações, sempre haverá um abismo intransponível entre humanidade e animalidade. E ainda bem, pelo menos para eles. Se virmos o mal que os humanos são capazes de infligir uns aos outros (e aos bichos), perceberemos que nenhum outro animal tem idêntica capacidade de perfídia e ruindade. Faça-se um balanço, Auschwitz, o Gulag ou Hiroxima, de um lado, e, do outo, o bem, o incomensurável bem, e a felicidade imensa que os cães nos têm dado ao longo de milénios. Um cão não tem ódio nem inveja, não conhece a hipocrisia ou a vaidade, e só faz o mal se for treinado ou maltratado para isso - pelos seres humanos. Connosco é diferente, terrivelmente diferente: o mal parece ser inerente à nossa natureza, tal é a dimensão e o requinte que a crueldade perversa entre nós assume, até na indiferença que somos capazes de manter perante o sofrimento alheio.

A maior e mais triste lição que podemos retirar da actual pandemia, desde o seu início, é a forma abjecta como os seres humanos são capazes de desprezar os seus semelhantes. Houve e sempre haverá, é certo, exemplos admiráveis de altruísmo e entrega, mas, por serem tão raros, são tão louvados, o que desde logo é triste, perturbador. Devemos interrogar-nos quem é afinal o homem e quem é o cão, quando vemos o modo como os nossos governantes e a nossa sociedade têm tratado os idosos, os mais vulneráveis, os mais expostos pela covid ao perigo da morte e da dor. O ano passado, não foram tomadas ou tardaram as medidas de protecção e testagem nos lares da terceira idade, quando já era por demais evidente - até pelo que íamos sabendo do estrangeiro - que aí residia o fulcro da maior tragédia. Surgida a esperança da vacinação, só a custo se incluíram os mais idosos nos grupos prioritários, enquanto a maralha canalha se acotovelava para passar à frente na lista dos bafejados pela Pfizer. O resultado surgiu há dias: ao fim de três meses de vacinação, só 33% dos idosos com mais de 80 anos receberam a vacinação completa e cerca de 24% não receberam ainda qualquer dose; na faixa etária dos 65-79 anos, só 3% têm a vacinação completa. Em contraste, a faixa etária dos 24-49 anos é a segunda mais vacinada (4% com vacinação completa). Afirmou a ténue ministra que tal se deve ao facto de ter sido dada a prioridade aos profissionais de saúde.

Simplesmente, dos 28 mil profissionais de saúde infectados desde o início da pandemia morreram apenas 19 pessoas, felizmente. É acima dos 60 anos que se concentram 98% das mortes, mas os mais vacinados estão... abaixo dos 60 anos. Com todos os estudos e dados estatísticos a dizerem, a gritarem, que a idade é o factor de maior peso na mortalidade por covid-19, adiar a vacinação dos mais idosos é aumentar exponencialmente o seu risco de morte. Será isto humano, civilizado?

Há dias, com a conivência de um país inteiro, vimos professores sorridentes, com 20 ou 30 aninhos, a esticarem os braços para as picas milagrosas, e ninguém se questiona, ninguém se indigna, ninguém interpela as autoridades máximas da nação sobre como é possível, como é moral e humanamente admissível que jovens sem risco algum estejam alegremente a tirar o lugar aos mais indefesos, aos mais carentes. As vacinas e os recursos mobilizados para vacinar professores por atacado poderiam servir para salvar muitas vidas - cálculo que não foi feito, de todo, até porque ninguém o reclamou. O que ocorreu em Portugal no passado fim-de-semana foi uma gigantesca operação de eutanásia cívica e moral, reveladora do mais profundo desprezo pela vida humana e pela sorte dos mais idosos. Não duvidem: a História registará tudo isto, este momento ignóbil. Mas, por ora, poucos ladraram, ou sequer uivaram. Os cães seriam incapazes de tamanha maldade.

(para a Cristina Frazão, para o Ricardo Álvaro e para a Biga, que, sendo cão, também é gente)


Historiador. Escreve de acordo com a antiga ortografia.

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt