Cistermúsica sob o duplo signo de Cervantes e de Shakespeare
O XXIV Cistermúsica tem hoje, às 18.00, um dos seus pontos altos, com a primeira visita ao nosso país do alemão Henschel Quartett, sem dúvida um dos melhores quartetos de cordas da atualidade, tocando Mozart, Schulhoff e Beethoven. O festival celebra Cervantes e Shakespeare e o segundo transparece no Quarteto op. 18 n.º 1 de Beethoven em programa, cujo Adagio affettuoso ed appassionato terá sido inspirado na cena do túmulo do seu Romeu e Julieta.
Contacto integral com os dois escritores terá, porém, o concerto do quarteto a cappella britânico Orlando Consort, no dia 10 (18.00, Claustro D. Afonso VI do Mosteiro). Ao DN, Angus Smith, tenor e membro fundador do grupo que em 2017 começa a celebrar 30 anos de existência, adianta que "é um projeto algo inusual para nós, já que nos obriga a viajar cerca de um século além do nosso repertório habitual, que termina cerca de 1500". Mas qualquer desconforto é logo mitigado por uma óbvia vantagem: "Tivemos de convidar dois sopranos para este programa, o que é desde logo um prazer enorme para nós, quarteto masculino!", diz, entre risos.
Este programa, "todo ele praticamente dedicado a música profana", precisa, "fizemo-lo somente uma vez, há uns dez anos, num festival em Espanha e agora, 2016, com toda a excitação à volta de Shakespeare em Inglaterra, eu de repente lembrei-me da coincidência que sempre me fascinou de eles terem falecido em dias consecutivos e disse: "Espera lá, não devíamos esquecer Cervantes..." Pensei que o confronto seria pedagógico para o público inglês e mais interessante para os outros públicos".
[artigo:5261429]
Os ingleses e os espanhóis
Do lado inglês, explica, "estamos a falar de autores de música profana do tempo de Isabel I, cujo nome poético na música - Oriana - se tornou um segredo de Polichinelo, e até de Jaime I Stuart, mas fazendo um contraponto com os seus predecessores do tempo de Henrique VIII". Já nos autores espanhóis, cita "Mateo Fletxa, Francisco de la Torre, Alonso de Mondéjar e Francisco Guerrero", observando, na comparação com a música inglesa coeva, "serem estilos na verdade muito semelhantes sob múltiplos aspetos".
Antes deste, já os Orlando haviam "cantado" Shakespeare: "Mas aí foi com música coetânea dos reis ingleses que são título de tragédias suas, com referência a personagens e eventos lá mencionados."
E qual dos dois mais enalteceu a música? "Ah, não estou em condições de responder: é que não conheço Cervantes tão bem assim..."
Depois de Alcobaça, adianta, "este programa será repetido em Espanha, em setembro". Regressos a Portugal "ainda não estão agendados, mas gostávamos muito de voltar em breve a Lisboa", cidade onde em abril último, nos Dias da Música do CCB, protagonizaram um memorável concerto de inspiração goesa, junto com três músicos indianos: "Imaginei aquele programa após uma visita que fiz a Goa. Ficou no limbo até se ter feito um Festival Indiano em Londres. A falta de fontes deu-nos uma grande liberdade na escolha do repertório. Aproveitamos qualquer ocasião para o repetir e Lisboa era simplesmente o pretexto ideal! [ri-se]"
O bobo do rei Lear a dançar
Também na obra Dance of the Fool, para solo de percussão, de António Chagas Rosa (n. 1960), está presente um eco de Shakespeare: "É uma homenagem ao Bobo do Rei Lear, concretamente à cena 6 do 3.º ato, última em que aparece", conta-nos o compositor. Integrada num programa que junta percussão (Manuel Campos, do Remix Ensemble) e bailado (alunas da Academia de Dança de Alcobaça, coreografadas pela norte-americana Alia Kache), a obra, continua o compositor, "alia uma certa loucura, por via da personalidade do Bobo, a um carácter frenético e dançante", este propiciado "pelo próprio set de percussão que escolhi, o qual inclui adições como cornetas, apitos, chamarizes de pássaros e até os guizos do barrete de bobo!", conta, rindo-se. Parafernália esta que "obrigará o intérprete a fazer ginástica e a criar idealmente uma coreografia própria, que faça contraponto com a das bailarinas". Este concerto realiza-se no dia 23 (às 22.00), no Cine-Teatro de Alcobaça, e inclui segunda estreia absoluta, do compositor grego Dimitris Andrikopoulos (n. 1971), além de obras dos também gregos Iannis Xenakis e Christos Hatzis.
Ecletismo em Espinho
Mais a Norte, em Espinho, o 42.º Festival local apresenta hoje (18.00, Auditório de Espinho) um concerto do ensemble Sete Lágrimas, cruzando estilos, línguas, geografias e épocas pelas "sete partidas" históricas dos portugueses.
Uma boa ilustração do ecletismo que atravessa o festival como um todo, no qual coexistem eventos como o concerto da Sinfónica do Porto Casa da Música com a grande violoncelista russa Natalia Gutman (dia 8) ou dois concertos com participação do excelente pianista francês Eric Le Sage (dias 15 e 17), por um lado; e, do outro, o jazz de Paolo Fresu/Omar Sosa (dia 6) ou Dhafer Youssef (Bird"s Requiem, no dia 16), para culminar no concerto de encerramento (dia 22), ao ar livre, tendo por solista a grande cantora de Medellín (Colômbia) Andrea Tierra, acompanhada do harpista seu compatriota Edmar Castañeda.