Cinema social consagrado por Almodóvar em Cannes
Se faz sentido dizer que o júri de um grande festival de cinema se pode distinguir também pela surpresa das decisões, então há que reconhecer que o coletivo presidido por Pedro Almodóvar, em Cannes, conseguiu marcar pontos. A Palma de Ouro atribuída ao filme The Square, realizado pelo sueco Ruben Östlund, foi um coelho tirado de uma cartola que, afinal, funcionou muito além das previsões maioritárias dos jornalistas e críticos que acompanharam a 70ª edição do maior certame cinematográfico do mundo.
Juízos de valor à parte, talvez se possa deduzir que o júri quis, acima de tudo, destacar um filme capaz de condensar alguns temas do presente a que todos nos tornámos sensíveis. The Square centra-se na personagem do diretor de um museu de arte moderna (Claes Bang) que, depois de lhe roubarem a carteira em plena rua, vive uma série de peripécias cada vez mais insólitas. Com um misto de dramatismo e ironia, o filme reúne sinais da decomposição afetiva das relações humanas, da banalização do sexo, da crise de valores da arte, etc. Dito de outro modo: mal ou bem, é um filme que todos reconhecem ligado ao "nosso tempo".
Para Östlund, foi também a confirmação do reconhecimento em Cannes, uma vez que em 2014 já tinha sido um dos fenómenos de popularidade do certame, com Força Maior, sobre a crise de uma família em férias nos Alpes - o filme valeu-lhe, então, o prémio do júri da secção Un Certain Regard.
Os dois outros filmes apontados como sérios candidatos à distinção máxima do festival - 120 Battements para Minute, de Robin Campillo, e In the Fade, de Fatih Akin - são também reflexo da predominância dos chamados temas sociais, com conotações mais ou menos políticas: o primeiro evocando o coletivo Act Up-Paris, no começo dos anos 90, lutando contra a indiferença em relação aos sinais de proliferação da sida; o segundo expondo um caso de terrorismo, na Alemanha, visando um casal constituído por um homem turco e uma mulher alemã. Acabariam por receber distinções importantes: o primeiro foi consagrado com o Grande Prémio (o mais importante logo a seguir à Palma); o segundo valeu a Diane Kruger a melhor interpretação feminina.
O thriller You Were Never Really Here, de Lynne Ramsay, protagonizado por Joaquin Phoenix, seria o único filme a receber dois prémios, um deles para a própria realizadora, na qualidade de argumentista. A atribuição do outro prémio gerou um dos momentos mais bizarros de uma cerimónia algo desorganizada, pouco eficaz no plano espetacular, apresentada por uma Monica Bellucci em tom automatizado e monótono. Assim, quando foi anunciado o prémio de interpretação masculina para Phoenix, o ator, sem dominar o francês, permaneceu alguns segundos no lugar, confundido pelo facto de várias pessoas lhe dizerem para se levantar... Depois, pediu desculpa por estar de smoking e sapatos de ténis...
Enfim, importa sublinhar a proeza de Sofia Coppola: o seu prémio de realização é, nessa categoria, apenas o segundo para uma mulher em toda a história do festival (a soviética Yuliya Solntseva ganhara em 1961). E registar a "invenção" de um Prémio do 70º Aniversário, atribuído a Nicole Kidman. Com admiração ou sarcasmo, muito se comentou a sua condição de "Rainha de Cannes", protagonista de quatro títulos presentes no certame - Almodóvar não quis discutir os privilégios da realeza cinematográfica.