Cinco obras do Japão, país onde os exóticos eramos nós
Imagine espreitar o interior de um biombo japonês com quatro séculos e encontrar milhares de cartas e outros documentos. Aconteceu há cerca de quinze anos, e esse biombo está no Museu Nacional Soares dos Reis (MNSR), no Porto. Mas comecemos por aquilo que habitualmente vemos: a camada pictórica que constitui o exterior de um biombo. E se olharmos para aqueles três pares que hoje estão no Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA) e no MNSR - feitos entre o século XVI e XVII - ali encontramos os portugueses, com as suas naus, os seus missionários jesuítas, e as suas mercadorias. Dizemos portugueses, mas para os japoneses eram os nanban-jin, termo com que foram designados quando, em 1543, chegaram ao Japão. Significa "bárbaros do sul".
"Há este entendimento do estrangeiro, mas conotado com o termo "bárbaro": aqueles que não se comportam da mesma maneira, que se regem por outros princípios, falam alto, comem com as mãos, não têm maneiras, são abruptos nos seus gestos, com traços faciais mais evidentes...", explica Alexandra Curvelo, professora no departamento de História de Arte da Universidade Nova de Lisboa que investiga a presença portuguesa na Ásia e a arte nanban (aquela que representa os "bárbaros do sul"). Explica que, naquela época, "no Japão os exóticos somos nós", e que se os portugueses foram então retratados através da pintura, tal aconteceu sem qualquer interferência destes. "Os biombos nanban eram para o mercado japonês." E trazem uma modificação importante: introduzem a representação do quotidiano numa pintura que estava maioritariamente subordinada aos temas religiosos ou literários.
O par que forma o biombo - note-se que a língua portuguesa manteve o termo japonês - do MNSR foi aberto no início do século XXI para uma intervenção de restauro feita no Japão e, ao desmontá-lo, foram encontrados "cerca de 2500 documentos datáveis do século XVI ao século XIX. Alguns deles associados à própria história da missão [cristã no Japão]" conta Curvelo, autora do álbum Obras-Primas dos Biombos Nanban. Eram "cartas, papel que foi utilizado nas aulas do próprio seminário e da missão, missivas que já não são necessárias...": aquilo que seria hoje equivalente a usar jornais velhos. É que aquelas paredes pintadas, que chegavam a ter "quatro metros por dois e meio de altura", eram preenchidas, no interior, por "dezenas de camadas de papel".
Alexandra Curvelo estudou, na sua tese de doutoramento, o seminário de pintura fundado pelos missionários jesuítas no Japão, na década de 1590, e que ensinou "não apenas os japoneses convertidos ao Cristianismo, mas qualquer japonês que quisesse aprender a pintura à maneira ocidental". "Os jesuítas desde cedo percebem a importância que a imagem tem para os japoneses, essa veneração das imagens está muito presente no próprio budismo. Percebem que é fundamental para a conversão e para a evangelização do território", explica.
"Ao lermos as cartas dos jesuítas no Japão, vemos que eles estão permanentemente a pedir que sejam enviadas pinturas e especificam: com a imagem da Virgem e do Menino, da Sagrada Família, da Adoração dos Magos, etc." Mas elas não chegavam. Muitas ficavam em Goa ou Macau. "Eles percebem que não podem ficar dependentes do envio das imagens da Europa, e é isso que vai constituir uma das grandes originalidades da missão do Japão. Não há tempo: de Lisboa a Nagasáqui eram cerca de dois anos e meio." Às vezes o navio nem chegava, e "esses eram anos de desespero para os missionários; percebemos isso nas cartas."
Naquele seminário até "membros de templos budistas vão entrar" e forma-se, então, "um seminário de pintura com vários alunos japoneses a aprender pintura com iconografia ocidental, a modulação do claro escuro, da luz e da sombra, a adoção da perspetiva ocidental, com ponto de fuga: as implicações que isto tem, inclusivamente da representação do mundo, são imensas."
Pedimos a Alexandra Curvelo que recomendasse cinco obras de arte japonesa que possam ser vistas em Portugal.
Sugestão de um percurso
Além dos biombos, a professora recomenda a visita, no Museu do Oriente, em Lisboa, às armaduras ali guardadas. "Uma das expressões [artísticas] maiores é a arte da guerra", explica Curvelo, referindo "a importância que as armaduras têm nesse entendimento de uma expressão artística que lhe está associada, além das próprias armas". Ambas, lembra, integram as coleções de "qualquer grande museu japonês". E se for ao museu aproveite ainda para ver os netsuke, a pequeníssima "peça indiscutivelmente japonesa" e "de uma delicadeza notável", que a cultura nipónica usava nas pequenas bolsas em que eram guardados os pertences.
Apesar de estarem nas reservas do Museu Calouste Gulbenkian, pelas delicadas questões de conservação que exigem, as gravuras da série Estações do Tokaido são outra das obras apontadas por Curvelo. Editadas no século XIX e feitas pelos mestres Hiroshige, Kunisada e Kuniyoshi, as 55 estampas podem apenas ser consultadas por investigadores. Contam as várias paragens do Tokaido, a viagem que ligava Quioto, antiga capital imperial, a Tóquio, a capital após a unificação do país.
A professora Alexandra Curvelo visitou o Japão em trabalho pela última vez em 2015, onde conheceu descendentes dos chamados cristãos escondidos (kakure kirishitan), vítimas de uma violentíssima perseguição que se agudizou sobretudo com a expulsão dos missionários do país, em 1614. "Em última análise, a unificação do reino vai determinar a expulsão [da missão católica]. Porque compete. Estes estrangeiros são entendidos como uma força potencialmente subversiva; os missionários estão muito perto do povo, levaram a uma conversão de milhares de japoneses sobretudo na ilha de Kyushu. E são entendidos como uma potencial ameaça, no sentido de uma força que pode levar a uma rutura, a tensões. E daí a revolta de Shimabara [entre 1637 e 38]."
Por fim, a investigadora recomenda a coleção de objetos lacados do Palácio Nacional da Ajuda, que testemunham um período muito diferente da história. "Há várias peças japonesas lacadas que terão chegado a Portugal por via das relações diplomáticas que Portugal depois vai ter com o Japão, no século XIX", diz. A estante japonesa que vemos na fotografia ao lado, por exemplo, foi uma oferta dirigida ao rei D. Luís.
No fim da conversa, Alexandra conta que está ansiosa por ver o filme Silêncio, de Martin Scorsese, que estreia na próxima quinta-feira. Afinal, conhece bem aquela missão de jesuítas portugueses no Japão. Leu as suas cartas, sabe distinguir a escrita de missionário para missionário.