Cidades
1. Vou a Argel. Como não há voo directo, aproveito para dar uma olhadela rápida a Toulouse. Em França janta-se sempre bem e eu gosto cada vez mais de pequenas cidades que escapam aos itinerários habituais. Gastei parte do pouco tempo disponível a ver a grande praça local, La Place du Capitol, porque, agora, vejo tudo isto com outros olhos: a circulação, a iluminação, a ocupação do espaço público, o aproveitamento das arcadas, em suma, o que dantes, para mim, era apenas uma noção de harmonia, vida, cor e luz. E constato mais uma vez como parece tão simples, para os outros, manter um património arquitectónico e histórico conservado, vivido e fruído.
Já em Argel visitamos, nos arredores, as ruínas de Tipasa. Uma cidade romana do séc. I, que se espalha por duas colinas sobre o Mediterrâneo, banhada por uma luz mágica e um constante cheiro a jasmim e lima. Um espaço quase intocado até à sua descoberta, na década de 40, quando uma família francesa de vinhateiros comprou aqueles 25 hectares para plantar vinha. Perante um achado arqueológico de tão grande dimensão, não se pensou mais em vinhas e começou o trabalho dos arqueólogos que prossegue até hoje. Tivemos a sorte de ser acompanhados pelo director e de (sentimento egoísta, reconheço) o espaço estar, nesse dia, fechado ao público. Foi uma longa passeata, trepando por carreiros íngremes, abrindo caminho através de uma flora do Sul, os pinheiros vergados por tempos infinitos de vendavais, e o arqueólogo mostrando-nos tudo como quem mostra a própria casa, obrigando-nos a um constante exercício de recriação, para localizar as portas, os utensílios do quotidiano, o mobiliário e as pessoas, tudo, enfim, o que o tempo levara, mas podia reviver através das histórias de cada muro, escada, túmulo, anfiteatro, forno, sistema de recolha e aquecimento da água, fontes e colunas. A cada passo chamava a nossa atenção para a racionalidade com que tudo fora pensado e executado. "Não havia desperdício", repetia vezes sem conta. Fixei-me, de novo, no espaço público feito para convívio e fruição, na largura impressionante das avenidas, nas dimensões do teatro e do circo, na organização das casas, na disposição das ruas comerciais, no condicionamento da circulação em certas zonas e nos espaços reservados aos carros e cavalos, os parques de estacionamento de então, bem afastados do centro.
E visitamos, em seguida, a própria cidade de Argel, que tal como Lisboa tem colinas, uma enorme zona ribeirinha e a luminosidade do Sul. O que os franceses lá deixaram e o que os argelinos foram acrescentando. As cidades são uma história sem fim, e a aproximação mais impressionista aos grupos humanos que as habitam.
2. Vou ver os jovens que vivem nas "Glicínias", um casarão que acolhe, mediante uma módica quantia, raparigas e rapazes vindos de diferentes países para trabalhar em organizações internacionais, fazer estágios ou pós-graduações. Quando os olho parecem-me o melhor deste mundo global de que são filhos exemplares, adaptando as suas culturas à cultura local, curiosos, gregários, independentes e determinados. As Glicínias devem-se a uma iniciativa da Igreja Católica, mas vejo ali diversos credos, raças e cores. Quando soa o toque do imã, anunciando o sol-posto e o fim do jejum, sentamo-nos à roda da mesa para partilhar uma refeição argelina em pleno Ramadão.
Estes citoyens du monde retiram-me definitivamente do pequeno mundo paroquial e doméstico em que Portugal se vai, tristemente, transformando. Repondo as prioridades e relançando as expectativas, alargando o horizonte, percebendo a diferença, convivendo com o confronto, vivendo as mudanças dolorosas do mundo nestes tempos desvairados, lúcidos quanto à condição humana e as suas inesgotáveis resistências.
3. Com centro na embaixada de Portugal, muito activa, temos oportunidade de encontrar uma série de embaixadores e de personalidades locais, e, com eles, perceber e discutir a situação da Argélia dos últimos anos: o país tem tido uma vida difícil desde o início dos anos 90, balançando entre uma progressiva reforma de institucionalização democrática e privatização da economia, e os riscos de um fundamentalismo islâmico, que, após a crise eleitoral de 1992, se traduziu numa ofensiva terrorista de grande escala, com o habitual ciclo de insurreição, repressão, "guerra suja"; nos últimos anos, o Presidente Bouteflika parece ter conseguido, com uma política, combinando mão estendida e integração com firmeza para os "irredutíveis", diminuir muito substancialmente os níveis de terrorismo, o que se reflecte na normalização securitária nos centros urbanos, embora persistam incidentes isolados no Sul do país.
A minha noção é que a Argélia e o Magrebe são áreas muito importantes para a política externa e a internacionalização da economia portuguesa e daquelas onde é essencial a coordenação entre o Estado e as empresas, para encontrar oportunidades e minorar riscos. Está próxima, tem uma relação histórica de longa data, não tem atritos nem traumas políticos recentes, tem complementaridades e sinergias de produtos e serviços. Mãos à obra.