"Cidade Global", a exposição maldita é inaugurada hoje

Vítima de sucessivos atrasos e de suspeitas sobre a autenticidade de duas obras que estão na exposição, "Cidade Global - Lisboa no Renascimento" é inaugurada hoje. Fica (apenas) até 9 de abril.
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Cidade Global - Lisboa do Renascimento é a exposição que Museu Nacional de Arte Antiga tinha planeado mostrar no último trimestre do ano passado e que só é inaugurada esta tarde, às 18.30, com o ministro da Cultura, Luís Castro Mendes, para ficar apenas um mês e meio de portas abertas, atendendo aos compromissos já firmados com os Museus do Vaticano. Em vésperas da abertura, uma nova polémica, desta feita em torno da autenticidade dos quadros.

"Faz parte dos percalços administrativos", explicou ontem o diretor do museu. "Tem que ver com as circunstâncias em que trabalham os museus da DGPC [Direção Geral do Património Cultural]". Uma "máquina pesada", como descreveu António Filipe Pimentel, sudiretor geral do Patrímónio Cultural por inerência, garantindo estar a trabalhar com o Ministério da Cultura "para mudar este mecanismo obsoleto". Essas questões estão ligadas, por exemplo, ao transporte de obras de arte, um dos problemas que impediram cumprir o calendário previsto. Para Cidade Global, 80 entidades, públicas e privadas, emprestaram peças. Por exemplo, a peça-estrela, a vista da Rua Nova dos Mercadores, gatilho da exposição, veio de Londres. Pertence à Society of Antiquaries de Londres, em Kelmscott Manor

É uma das obras cuja autenticidade foi posta em causa numa notícia do Expresso de sábado. "É um quadro forjado no século XX a imitar o passado", diz o historiador João Alves Dias, citado no artigo, sobre o quadro, identificado em 2009. Diz-se ainda que não poderia ter feito parte do espólio do pintor Dante Gabril Rossetti (1828-1882). Pimentel contrapõe com as investigações das comissárias da exposição Kate Lowe e Annemarie Jordan, as primeiras a identificarem esta vista como pertencendo a Lisboa, e o artigo publicado por Julia Dudkiewicz no The British Art Journal intitulado "Dante Gabriel Rossetti's collection of Old Masters at Kelmscott Manor".

Esta historiadora investigou o testamento de May Morris, filha de William Morris e herdeira de Kelmscott Manor de que consta uma lista de 220 objetos que foram doados à Universidade de Oxford, com a casa. "Nessa lista, com descrições dos vários itens, que englobam proveniências e localização na casa, surgem os dois quadros representando a Rua Nova dos Mercadores: 'Duas imagens de cenas de uma cidade, parte das coisas de Dante Gabriel Rossetti'.

Mas é possível ir mais atrás. Annemarie Jordan Gschwend, do Centro de História de Além Mar, na Suíça, explica que, após a descoberta, a obra foi requisitada para uma exposição no Museu Rietberg, que patrocinou o seu restauro. A restauradora situa a obra no século XVI depois de analisar a sua pigmentação. "É só ler o livro", afirma Annemarie Jordan. Fala de The Global City: On the Streets of Renaissance Lisbon", editado em 2015 com a Fundação Calouste Gulbenkian.

No que diz respeito à obra Chafariz d'El Rey, Pimentel aceita que não foi produzido "um exaustivo estudo monográfico, material e iconográfico", mas a obra é conhecida. Sabe-se que a finais do século XIX pertencia à coleção do conde Adanero, de Madrid. "Identificada como uma cena urbana, foi fotografada cerca de 1940 pela Casa Moreno/Archivo de Arte Español". "Foi reconhecida como representando o Chafariz d'el-Rei no antiquário madrileno, Caylus Anticuarios, e divulgada em Portugal por Vitor Serrão em 1998". Foi adquirida pelo empresário Joe Berardo.

O historiador de arte Fernando Baptista Pereira, que fez parte da organização da exposição Os Negros em Portugal, séculos XV a XIX, atesta da autenticidade da obra. "São cenas irónicas, pícaras da vida de Lisboa", nota Baptista Pereira, ao DN. Acredita que se trata da visão de um artista de fora em Lisboa, mas provavelmente executada em Lisboa. "Os exames já feitos dizem-nos que a superfície da tela e a preparação técnica têm afinidades com o que se fazia na Península Ibérica".

"É inquestionavelmente pintura antiga", diz António Filipe Pimentel sobre os quadros, acrescentando que está aberta a possibilidade de se fazerem exames laboratoriais às obras, "desde que os proprietários queiram". Mas, adianta: "É preciso saber se se consegue avançar mais do que aquilo que já foi feito". Papel dos historiadores de arte.

A exposição propriamente dita

Kate Lowe diz que esta exposição "é a prova de como o mundo se passava em Lisboa". A historiadora de arte que trabalha na Universidade Queen Mary, estava no Museu Britânico a trabalhar numa exposição sobre Shakespeare quando uma colega lhe mostrou uma fotocópia com a vista da Rua Nova dos Mercados. Embora se venha dedicando aos estudos sobre África, achou que podia tratar-se de Lisboa, o que confirmou com a outra comissária. E na sala oposta da galeria de exposições temporárias do MNAA, Annemarie Jordan também fala dessa cidade onde tudo acontecia, incluindo o comércio de animais exóticos junto ao rio.

Catarina de Áustria, já casada com D. João III, envia-os de presente para a família na Alemanha e em Viena. E o rinoceronte embalsamado do Museu de História Natural que aqui aparece também tem uma razão de ser. "Existem descrições de como um rinoceronte nadava no Tejo". E quando D. Filipe II tomou Portugal mandou para Madrid um elefante e a rinoceronte Abada que se mostrava, cobrando bilhete, em Madrid. Vivia naquela que é hoje, precisamente, a Calle Abada.

Informações úteis:

Cidade Global - Lisboa no Renascimento

Museu Nacional de Arte Antiga
Rua das Janelas Verdes, Lisboa
De 24 de fevereiro a 9 de abril
Aberta de terça a quinta e aos domingos, das 10.00 às 18.00.
Horário alargado às sextas e sábados, das 10.00 às 20.00.
Entrada gratuita na exposição nos dias 25 e 26 (mantém-se a entrada paga no museu), nos primeiros domingos do mês, crianças até aos 12 anos e clientes da CGD.

Bilhete: 6 euros (descontos de 50% para estudantes, maiores de 65 anos, famílias.

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