Cidadania da língua faz pátria, não pária
Somos todos imigrantes. Filhos ou netos de alguém que um dia cruzou uma fronteira. Se olharmos atentamente, tivemos (ou fomos nós mesmos) um pária em algum lugar. Talvez por ainda vingar com mais força a ideia de serem os territórios e as fronteiras (inventadas) o que cria pertencimento.
A cidadania é civitas e é ela que faz o humano ser pessoa(persona) o personagem de uma cidade ou de um enredo cujo sentido autoriza ser parte e membro, seja por força do nascimento ou por uma ordem do cosmos fundada numa physis já há muito reinventada pelo Iluminismo (ou substituída pela caneta de alguns). É neste papel imposto ou assumido que se pode falar em poder, em direitos e em deveres, em pátria, em párias e cidadania.
Nesse sentido, nada mais interessante ser uma feira do livro, a de Coimbra*, a cidade histórica dos trânsitos, a sede das discussões sobre direitos, a realizar uma intensa programação sobre "cidadania da língua". Um trabalho delicado e corajoso que vem sendo desenvolvido de forma pioneira pela Associação Portugal-Brasil 200 anos.
No ocidente dizemos todos serem livres e iguais desde 1789, mesmo que alguns sejam muito mais parte do todos, dos livres e iguais que outros e outras. Mas para além das escrituras humanas e das sagradas, cujos limites interpretativos são visíveis nas discriminações, violências e exclusões cotidianas, há algo que nos costura em pertencimento e nos faz próximos, apesar da distância e das preposições. A isso chamo de verbo, o ato de falar e dar sentido quando nos relacionamos, mesmo que às vezes erremos alguma concordância.
A língua e a linguagem - e aqui não vou enfrentar as sutilezas epistemológicas ou ontológicas de cada uma - apenas destacar que essa língua pátria, a língua mãe, é tanto a herdada quanto a aprendida pela força de um desejo. Por isso, a cidadania da língua pode ser pensada como a radicalização do sujeito como um território movente em si mesmo, esse sujeito que é verbo na sua ação, nos seus trânsitos e momentos.
A ação do sujeito no mundo da vida à língua. A língua é criada e é criadora, pois ao mesmo tempo em que reflete cultura e identidades, também influência a forma como as pessoas se expressam e se relacionam com o mundo.
Se nascer em determinado lugar é um ato irrevogável e imposto com tempo certo, tal qual nosso nome, a língua vai além. Ela é matéria, mater, É substrato para ser no mundo, é movimento. Esse é o sentido mais original de mãe.
Mãe é a mater. Língua mater. E há mães que pariram e há mães que adotaram, mas todas fizeram os filhos vingarem, são todas genitoras de alguém. E como já escreveu José Manuel Diogo,"pela primeira vez na história das nações pertencer a uma língua garante pertencer a um lugar" (link: https://www.jn.pt/opiniao/jose-manuel-diogo/a-primeira-lei-da-cidadania-da-lingua-15885646.html), algo potencialmente explicito na nova lei de mobilidade dos países da comunidade de língua portuguesa, segundo ele.
A língua, portanto, é o alimento desse sujeito capaz de correr mundo e fazer elos. De tecer. Mas o sujeito singular fala com tom próprio e vai além da mãe, ele a carrega e a supera como numa dialética cuja síntese é a vida vivida.
E isso atravessa fronteiras e territórios. O humano radicalizado na sua diferença (respeitada) existe nas relações que ocorrem através do discurso. É no discurso que diferenças não se confundem com desigualdades, mas pode denunciá-las. Se falta à alguém a gramática isso diz menos sobre um caráter e mais sobre as condições de acesso a tal civitas. Uma vulnerabilidade não pode ser razão para o banimento, mas para o cuidado.
O ato de falar, seja com a boca ou com as mãos, nos equivale em valor, mas não em sentido. Eis o desafio genuíno de uma civitas forte: preservar diversidade. Quem aqui nunca disse a frase "sou responsável pelo que falo, não pelo que entendem". Os sentidos são delicadamente construídos onde nos relacionamos genuinamente. Impor um sentido é uma forma de dominação, de demarcar território. E fronteira é linha que divide e separa, dificilmente faz costura ou borda.
A cidadania da língua é o reconhecimento do fio do tecido em tecimento. A ideia de que isso nos vincula independente de uma norma jurídica. A língua, pois, não se restringe aos códigos e regras. Sua importância também está em ser um patrimônio cultural, logo comum, e meio de expressão. Ela é o veículo capaz de permitir a troca e transmissão de ideias, sentimentos e valores, e assim estabelecer vínculos e conexões que transcendem às barreiras legais, geográficas e morais.
Essa língua portuguesa é pátria e mãe porque nos dá signos mínimos capazes de criar sentidos comuns sem nos prender a eles. A palavra diz porque muito esconde.
E é no espaço da língua que a cidadania se constrói. Quando um brasileiro fala com um angolano e um português com moçambicano e percebe às proximidades e às distâncias, às vezes já no café da manhã que também é matabicho, o laço acontece.
Para mim lua minguante virou cambante desde o dia em que ouvi a música "Lua" do cabo-verdiano Princezito. E o meu tri, que significa "um muito", lá do sul do Brasil, dialoga com o "bué" de Angola. Algo de mim se amplia no encontro com esse outro que carrega em si a minha mãe, a língua mater.
A linguagem é uma falta, um corte, nunca diz tudo porque nem mesmo o tudo existe, apesar de insistirmos em procurá-lo em totalidades às vezes divinas às vezes jurídicas.
E essa língua pátria só é cidadã quando na boca de alguém com poder e chance de voz. Eis o sujeito território e o desafio.
A língua exige vagar, tempo, troca e paciência. Mais dúvidas e menos certezas, mais atenção e menos tensão. A tecnologia nos convoca a resgatar o que nos faz humanos. Não podemos esquecer ser a linguagem que nos permite sonhar e ir em direção ao outro. Eis a mater, a falta inaugural da dependência, a boca que toca o seio da mãe que alimenta, também, com melodia e palavra. Não somos sem um outro.
Me atrevo a dizer ser a ideia de "cidadania da língua" um convite, mais do que qualquer outra coisa, um convite para sermos parte de algo que precisa acontecer.
Como Borges escrevia não ser por acaso podre e poder se escrevem com as mesmas letras, também será artimanha da língua fazer com que pátria e pária se separem por apenas uma.
* A feira do livro de Coimbra acontecerá entre os dias 23 de junho e 02 de junho deste ano. A programação sobre cidadania da língua pode ser encontrada no @apbra200 (insta) ou www.portugalbrasil200anos.org.
Psicanalista e escritora, doutora em ciências humanas