Churchill com muita maquilhagem e pouco cinema

Com Gary Oldman no papel central, "A Hora mais Negra" evoca a fascinante personagem de Winston Churchill.
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Winston Churchill em herói de filme de guerra? É verdade. Digamos que, por isso, A Hora mais Negra merece o benefício da dúvida. Pela grandeza e importância histórica da figura retratada. Mas sobretudo porque já é tempo de o cinema, em especial no espaço anglo-saxónico, reagir à formatação imposta por muitos filmes de (super) heróis saturados de rotineiros efeitos visuais e bandas sonoras agressivas.

É mesmo verdade: estamos perante um filme que aposta na dimensão épica do primeiro-ministro britânico quando, em 1940, demarcando-se de algumas vozes do seu gabinete, mobilizou o país contra a ameaça nazi. Resta saber que ideias cinematográficas A Hora mais Negra tem para lidar com tão fascinante personagem e tão complexo período histórico.

Decididamente, algum do mais recente cinema inglês parece querer compensar a falta de ideias narrativas com a ostentação de próteses nos seus atores. No recente Um Crime no Expresso do Oriente, Kenneth Branagh expunha-se ao ridículo de compor a personagem do detetive Hercule Poirot com um bigode tão imponente que transformava cada cena num mero exercício de equilíbrio com o peso da maquilhagem...

Agora, o departamento de caracterização empenhou-se em tratar o rosto de Gary Oldman de modo a criar um Churchill "mimético", favorecendo uma interpretação tão mecânica que somos levados a supor que a maquilhagem tolhe os movimentos do ator.

A dimensão caricatural do empreendimento seria benigna, não se desse o caso de o realizador Joe Wright esbanjar, assim, as lições de uma nobre tradição do filme de guerra, fundamental na história do cinema inglês. Para nos ficarmos pelo essencial, podemos evocar o trabalho da dupla Michael Powell/ /Emeric Pressburger, com destaque para esse filme prodigioso que é Um Caso de Vida ou de Morte (1946). Era uma epopeia romântica centrada num piloto (David Niven) que, depois de morrer, negociava com um tribunal celestial a possibilidade de regressar ao mundo dos vivos - um objeto surreal que, num belíssimo paradoxo, nos diz mais sobre as vivências da guerra do que o naturalismo simplista de A Hora mais Negra.

Joe Wright, convenhamos, é o protótipo (muito na moda) do cineasta que entende a linguagem cinematográfica como um catálogo de tiques técnicos: um plano na vertical, de cima para baixo, ou movimentos de multidão registados em câmara lenta... e por aí se fica o seu conceito de "reconstituição" histórica.

De tal modo que o filme se vai perdendo no esquematismo da sua "mensagem". Veja-se a cena em que Churchill entra no metropolitano, descobrindo a população com que, afinal, não convive, acabando por montar uma espécie de minicomício de mobilização para a guerra... É bem possível que Joe Wright possa apresentar alguma caução factual como base da cena. Mas o problema é outro: o tratamento demagógico da situação anula qualquer possível verosimilhança histórica, correndo mesmo o risco de nos virar contra o herói. Há outra maneira de dizer isto: A Hora mais Negra é um filme incapaz de se pensar politicamente.

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