Christchurch: o crime perfeito
O manifesto deixado pelo suspeito do atentado terrorista de Christchurch ficará na história como o primeiro documento que demonstra a corrosão provocada pelas redes sociais. É um texto inteligente, usa subtis técnicas de pressão que ajudam muito à propagação do crime e também da sua mensagem racista. É a prova definitiva das consequências da cultura sem mediação apoiada num modelo de negócio pernicioso. As redes sociais são a caixa de Pandora de que o mundo não precisava. E às quais pode não sobreviver.
O texto está cheio de referências a uma vida construída nas redes. Muitas delas servem apenas como chamariz para eternizar a discussão sobre o manifesto e o horror que pretende justificar. E é o próprio que explica que as suas ações visam "desestabilizar e polarizar a sociedade ocidental". O texto mostra influências da subcultura da internet, mas também da instrumentalização ideológica que privilegia as teorias da conspiração racistas, antimuçulmanas e que se traduzem na "ameaça ao homem branco" - teorias essas que são promovidas por vários políticos e que encontram hoje na Casa Branca uma figura de referência. Como escreveu a investigadora de cultura online Angela Nagle, "as políticas reacionárias que desumanizam o outro estão a tornar-se dominantes" e o seu reflexo é cada vez mais o terrorismo.
Mike Wendling, jornalista da BBC que acompanha há anos os movimentos obscuros na internet, fez a cartografia da direita extremista e das suas múltiplas variantes no livro Alt-Right: From 4Chan to the White House (Extrema-direita: Do 4Chan para a Casa Branca). E é lá que explica que "a violência paz parte deste movimento há décadas" e liga os atos terroristas de Charleston em 2015 e de Charlotsville em 2018 com as redes organizadas de ódio de ativistas americanos como Alex Jones e sites como o Daily Caller e o Breitbart, que fomentaram a eleição de Trump.
Do ponto de vista do autor, o ataque às mesquitas neozelandesas é o crime perfeito, numa lógica de ação-reação. Foi construído na internet, foi promovido na internet e teve como consequência a propagação das ideias que lhe deram origem, também na internet. O crime, e o seu manifesto, representam a cultura troll que tem vindo a crescer online- primeiro nos fóruns minoritários das redes sociais Gad, 4chan e 8chan e Reddit, depois nas grandes redes sociais do Facebook e do YouTube, que funcionam como uma caixa de amplificação perfeita.
O massacre foi transmitido em direto pelo Facebook, utilizando uma ferramenta de difusão que já tinha sido usada para suicídios e variados atos de violência. Assim que ficou online, milhares de cópias do vídeo começaram a aparecer em todo o lado: no Facebook, no Twitter e no YouTube. Foi possível assistir à tragédia quantas vezes se quisesse.
Ao mesmo tempo, no Reddit - uma rede social ainda não muito divulgada em Portugal -, as discussões sobre o vídeo acusavam de censura quem o queria retirar - depois da tragédia, os gestores decidiram fechar os canais "gore" e "watchpeopledie" (literalmente "ver pessoas a morrer"), que existia há sete anos e tinha mais de 300 mil subscritores. Não fez grande diferença. Mais de 40 horas depois do massacre, vários utilizadores continuavam a colocar o vídeo online, estimulando outros para que o guardassem e repetissem o ciclo. Isto contribui para a radicalização de futuros extremistas, da mesma forma que este se inspirou no norueguês Anders Breivik, o autor de 77 assassínios em 2011.
Este ciclo, promovido pelas redes sociais, é o equivalente a um gigantesco cartaz que promove o racismo, o fascismo e a violência extrema. Mas o pior é que é um cartaz segurado e iluminado pelos algoritmos dessas redes sociais, que funcionam de forma automática e que colocam estes conteúdos em frente aos olhos dos milhões de utilizadores em todo o mundo.
É óbvio que as culturas extremistas e as teorias da conspiração sempre existiram, mas hoje têm formas de ampliar o seu alcance, graças ao modo de funcionamento das redes sociais - que oferecem a quem queira ler documentos intoxicantes para acreditar na "ameaça do genocídio branco" que outras culturas estarão a praticar.
Por mais que as plataformas digam querer policiar o conteúdo e contratem revisores para o verificar, serão sempre esforços inglórios. O problema está na forma como as plataformas funcionam, porque o seu modelo de negócio é intrínseco a esta propagação de conteúdo impróprio. Há menos de seis meses, ainda era possível colocar no Facebook publicidade dirigida a fãs de páginas relacionadas com "teorias da conspiração do genocídio branco", como revelou o The Intercept. Já antes a ProPublica tinha identificado maneiras de promover conteúdo no Facebook junto dos fãs de páginas como "Ódio aos judeus" e "Como queimar judeus". O YouTube coloca em visionamento contínuo (autoplay) vídeos que promovem teorias da conspiração sobre o 11 de Setembro, defesa de ideais nazis e falsos riscos da vacinação das crianças. Já não há maneira de negar que as redes sociais são máquinas de propagação de mentiras que têm consequências criminosas. E precisam de ser tratadas como tal.
Até agora, as redes sociais conseguiram escapar à regulação usando o argumento de que são apenas meios, plataformas, sem responsabilidade pelo conteúdo - é assim que têm criticado esforços como o da diretiva dos direitos de autor proposta pela União Europeia, no que têm sido apoiadas por muitos militantes da liberdade de expressão. Mas, a partir do momento em que estas plataformas promovem um tipo de conteúdo em detrimento de outro, estão a exercer escolhas editoriais em tudo semelhantes às dos meios de comunicação social. E tudo piora quando o conteúdo promovido é frequentemente ilegal e quase sempre extremista - porque é esse que dá mais cliques e aumenta os lucros.
A base de tudo isto é a forma como a publicidade funciona - os anunciantes pagam por quantas mais visualizações tiverem os seus anúncios. E uma das consequências dramáticas desta glorificação dos cliques como modelo de negócio dominante para a internet foi a transformação dos meios de comunicação social tradicionais em máquinas de informação superficial e populista, o que tem contribuído para baixar o nível de qualidade do espaço público. A americana Fox News é o maior exemplo de um meio de comunicação que subverte a realidade para agradar ao público-alvo, justificando a sua existência com uma deriva cada vez mais próxima do extremismo que visa perpetuar no poder os porta-estandartes da supostamente ameaçada "cultura branca".
Na guerra dos cliques, ganha quem tiver pior conteúdo - ou quem tiver menos vergonha de colocar online o pior conteúdo. Todos os dias, jornais de referência cometem excessos em busca do clique fácil. Os especialistas desta cultura digital têm por objetivo procurar o que é "viral" - a expressão é mais do que apropriada, porque ela vem da epidemiologia e relaciona-se com doenças contagiosas. Esta internet do "quanto pior melhor" é de facto uma doença que já reclama muitos milhares de mortos. Os de Christchurch são apenas os mais recentes.
A verdade é que nunca na história da humanidade se permitiu tal glorificação e promoção de violência. E, se há responsáveis, eles são os donos das redes sociais. Baseadas num modelo de negócio que depende de manter os utilizadores nas suas plataformas tanto tempo quanto é possível, apelam aos instintos mais básicos do ser humano para o conseguir, manipulando emoções. Ao mesmo tempo, beneficiam de uma exceção absolutamente irracional que as isenta de responsabilidades sobre o conteúdo publicado nas suas plataformas. E aproveitam o facto de que, cada vez que se discute a possibilidade de regular estas plataformas, milhares de utilizadores gritem censura.
É importante fazer aqui algumas clarificações. Em primeiro lugar, a liberdade de expressão tem limites: é crime promover o ódio e a discriminação e obrigatória a proteção da livre formação da personalidade de crianças e adolescentes. Com o direito de utilização do espaço público, vem também a responsabilidade - e é por isso que operadores de rádio e televisão, por exemplo, têm de cumprir obrigações em relação ao conteúdo que promovem. Mas estes meios são fáceis de legislar, porque o seu número é limitado e porque a massificação demorou décadas - dando tempo aos legisladores para produzir e adaptar normas que obrigassem os operadores a respeitar a liberdade de expressão em todos os seus aspetos.
Com a aceleração tecnológica, tudo se complicou. A internet é naturalmente um meio de comunicação, mas é muito mais do que isso. É um meio que anula o intermediário, permitindo que todos sejam ao mesmo tempo produtores e consumidores de informação de uma forma nunca antes vista. E retira contexto à propagação da informação - esse contexto foi sempre fornecido pelos meios de comunicação tradicionais. Mas, mais uma vez, a questão não é a internet.
O foco deve ser colocado sobre as redes sociais, porque é através delas que se promovem e propagam de forma massiva mensagens e conteúdos ilegais. Há uma razão pela qual as plataformas continuam a comportar-se desta forma, e é tão velha como a humanidade: ganância. Ter mais utilizadores, usá-los para ganhar mais dinheiro e usar esse dinheiro para influenciar a vida política para inibir mecanismos de controlo. É a subversão da democracia através de um capitalismo desenfreado que grassa nos Estados Unidos e que tem impacto em todo o mundo.
A vertigem da tecnologia está apenas a começar: a revolução digital está nos primeiros passos e tudo o que aí vem vai ocorrer mais depressa e com maior impacto. Como se prova diariamente, não estamos preparados para o que aí vem - e algumas das empresas que controlam as tecnologias determinantes para o futuro (inteligência artificial, nomeadamente) são precisamente as que fizeram fortuna com as redes sociais. As consequências de tudo isto podem ser bem mais desastrosas.