Quando Bento XVI renunciou ao cargo de Sumo Pontífice, a 11 de fevereiro de 2013, não houve críticas, mas elogios. O Papa que tanto tinha sido amado por uns e odiado por outros passava a ser o Papa do "ato histórico" na era da modernidade, só protagonizado 598 anos antes, pelo Papa Gregório XII, em 1415, que renunciou..Mas o "ato histórico" do então Papa alemão mexeu com a Igreja e deixou muitas questões no ar, que, na altura, poderão ter sido atenuadas pelo voto de silêncio e de recolhimento que prometeu. Como vai ser designado? Que papel vai ter? O que vai vestir? Branco ou vermelho, como os cardeais? Onde vai viver e como vai ser pago? Sobre tudo isto a Igreja teve de refletir, debater e aceitar. O que fez. Mas terá sido a Cúria Romana naïf em relação a estes votos, pensando que a coexistência entre duas figuras universais seria possível? Continuará a haver da parte de Bento XVI uma certa "sede pelo poder", uma vontade incessante de produzir teologia até ao seu fim? Ou as posições que assumiu após a renúncia e que soaram a críticas a Francisco são apenas fruto de uma certa imprudência ou até de manipulação da sua figura por aqueles que o rodeiam?.As questões são muitas e voltam a estar em cima da mesa depois de se saber, no último fim de semana, que Bento XVI era coautor - juntamente com o cardeal guineense Robert Sarah, prefeito da Congregação para o Culto Divino e Disciplina dos Sacramentos - de um livro sobre o celibato, com data marcada para chegar às bancas, em França e nos EUA, nesta quarta-feira, dia 15.. O livro Das Profundezas dos Nossos Corações, com a assinatura da editora Fayard Paris, de Pierre Fayard, rejeita a ideia da ordenação sacerdotal de homens casados, um dos temas que estiveram em destaque no Sínodo especial sobre a Amazónia, em outubro passado, e sobre o qual Francisco ainda prepara a Exortação final..As 48 horas de uma obra em coautoria.Em entrevista ao jornal Le Figaro, neste fim de semana, o cardeal Sarah falou em "crise na Igreja" e os excertos do livro, em que o tema do celibato ocupa todo um capítulo, voltaram a agitar os católicos. Tanto mais porque o Papa emérito veio referir não ter escrito o livro a quatro mãos, situação que o cardeal disse não ser verdade. Afinal, o que aconteceu? O que se passa? O cardeal classificou mesmo as suspeitas que penderam sobre a sua pessoa "como difamações de gravidade extrema", apresentando provas da colaboração estreita com Bento XVI para escrever este texto em prol do celibato..No dizer do cardeal, Bento XVI ter-lhe-á cedido notas suas sobre o assunto, dizendo-lhe que poderia usá-las como entendesse. Mas, na manhã de terça-feira, o secretário particular de Bento XVI informou a comunicação social de que o Papa emérito não tinha autorizado que o seu nome fosse usado como coautor do livro que Robert Sarah estava a preparar, pedindo que a sua assinatura fosse retirada dos textos da introdução e conclusões.. O secretário e prefeito da Casa Pontifícia referia também que Bento XVI "sabia" que o cardeal guineense, prefeito da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos (Santa Sé), estava a preparar um livro e tinha-lhe "enviado um pequeno texto seu sobre o sacerdócio, autorizando-o a usá-lo como o desejasse". "Mas ele [Bento XVI] não tinha aprovado nenhum projeto para um livro assinado conjuntamente nem tinha visto e autorizado a capa. Foi um mal-entendido, sem questionar a boa-fé do cardeal Sarah", afirmou D. Georg Ganswein, numa declaração enviada às agências Kna e Ansa e divulgada também no Vatican News..A tarde de terça-feira terminou com o cardeal Robert Sarah, conhecido como um dos membros conservadores da Igreja e opositores de Francisco, aliado do cardeal norte-americano Bourke e de outros, a aceitar a declaração de Bento XVI e a assumir que retirará a sua assinatura em edições seguintes..Um episódio imprudente, de total amadorismo ou verdadeira manipulação?.É certo e sabido que nesta quarta-feira, em França e nos EUA, o livro de Sarah estará nas bancas e muitos o quererão ler. Poderá até esgotar, o que não é certo e nem se sabe o que poderá ter levado a esta situação. Terá sido imprudência ou manipulação? "O que me parece é que há um aproveitamento das pessoas que rodeiam o Papa emérito, e que, manifestamente, não aceitam as propostas de Francisco", afirmou ao DN Juan Ambrosio, professor universitário e mestre em Teologia Sistemática..Já o vice-reitor da Universidade Católica Portuguesa vê o acontecimento mais facilmente "como uma manipulação da figura do Papa emérito"..Para o padre Francisco Martins, jesuíta, a fazer doutoramento em Estudos Bíblicos, na Universidade Hebraica, em Israel, o texto agora lançado "é sensível para a Igreja pelo momento em que é publicado". "É uma imprudência, resta saber de quem foi, de quem rodeia o Papa emérito ou do cardeal Sarah", afirma..O jesuíta encontra-se em França e tem assistido à agitação provocada pelo lançamento da obra, considerando que se tornou uma situação "problemática e de um amadorismo total". "Quem leu os textos publicados no Le Figaro percebe que a linguagem usada não é característica de Bento XVI, há expressões que não podem ser, de todo, suas, mas também não quero acreditar que o cardeal Sarah tenha tido a intenção de manipular o Papa emérito. Agora, digo que tudo isto revela uma falta de prudência total.".Francisco Martins refere que acredita que "tenha havido uma sobrevalorização de Sarah em relação ao que lhe foi dito". O jesuíta, num artigo que escreveu nesta terça-feira no site Ponto SJ, afirma o seguinte: "Sem querer ser injusto, não posso deixar de sentir que a história de Gedeão se está a repetir, aqui e agora, com Joseph Ratzinger/Bento XVI. Estes anos depois da sua renúncia podiam ter sido para o Papa emérito a ocasião de continuar a viver, no silêncio, a verdade da sua adesão a Cristo.".O jovem padre refere mesmo que, ao "aceitar sair do prometido recolhimento para 'levantar a voz' nas 'praças' do mundo e da Igreja, Bento XVI está a entrar no perigoso terreno dos que querem prolongar indevidamente a sua missão, escudados pela autoridade do bem que realizaram. No caso bíblico de Gedeão, isso provocou a sua ruína e a da sua casa. Oxalá o Papa emérito não se torne essa ocasião de queda para si próprio e para tantos que olham com admiração para a sua pessoa e obra"..O jesuíta defendeu ao DN que a grande questão para a Igreja é o facto de haver dois Papas, o que exerce e um emérito. "Duas figuras universais, embora só uma seja Papa, neste momento, Francisco, mas, quer se queira queira quer não, no mundo de hoje não é possível impedir o impacto que qualquer palavra de Bento XVI possa ter, sempre que quebra o silêncio prometido." Mesmo que, especifica, "ao falar, Bento XVI não tome posições sobre temas da atualidade ou que estão a exigir uma resposta da Igreja. Penso que as suas palavras seriam sempre vistas como uma forma de intrusão na ação de Francisco. Hoje o mundo funciona de outra forma e a Igreja vai ter de enquadrar esta figura", defende..O silêncio prometido que não é cumprido.Não é a primeira vez que Bento XVI, agora com 92 anos, quebra o silêncio e que sai do recolhimento. Há poucos meses, em abril de 2019, o Papa emérito divulgou uma carta de 6000 palavras em que expõe o seu ponto de vista sobre a origem da crise causada pelo escândalo dos abusos sexuais na Igreja. Mais uma vez, esta posição foi vista como de crítica e de enfraquecimento da posição do Papa Francisco. Antes, em setembro de 2016, outra posição de Bento XVI foi vista, mais uma vez, como uma crítica e aproveitada pelos opositores de Francisco, quando, em entrevista ao jornalista Peter Seewald, diz que no seu pontificado acabou com o lóbi gay e que não renunciou por estar dececionado com as intrigas motivadas pelo escândalo Vatileaks..Bento XVI fez votos de silêncio e não os tem cumprido ou porque está mais frágil nas suas capacidades ou porque poderá estar a ser manipulado pelas vozes mais conservadoras da Igreja e opositoras a Francisco. Mas a questão sobre a qual a Igreja terá de refletir, de debater e de definir ou enquadrar à luz do direito canónico é o facto de haver duas figuras a vestirem de branco..O professor universitário Juan Ambrosio reforça: "Só há um Papa, mas quando há uma outra voz, que já esteve no mesmo lugar, que quando soa parece ser a voz da contramão, é preciso que a Igreja pense numa maneira de lhe dar enquadramento, até porque na realidade de hoje esta situação pode voltar a acontecer.".O teólogo explica com o facto de a população viver cada vez mais tempo e de tal não ser diferente com os papas. Aliás, é importante que percebam que já estão sem energia e capacidades necessárias para continuar ao comando da Igreja, mas é preciso que se saiba que papel vão ter para "não se criar tensões", refere..Choque entre dois papas será "uma crise de crescimento".Sobre se a Igreja está ou não preparada para uma gerir uma crise entre os dois papas, o teólogo afirma que "ninguém está preparado para a rutura, mas se ela acontecer haverá certamente dificuldades, feridas, palavras desagradáveis, que terão de ser ultrapassadas"..Às vezes, "certas ambiguidades para se fazer crer que há uma conciliação criam mais tensão do que se se assumisse que, de facto, são duas pessoas diferentes com olhares e práticas diferentes", defende o professor e mestre em Teologia Sistemática. "A ambiguidade é muito desgastante", argumenta, acrescentando que, "quando temos duas figuras universais em que uma diz uma coisa e a outra diz outra, há sempre tensões"..Juan Ambrosio sustentou ao DN que a situação que marca o dia 14 de janeiro de 2020 talvez tenha surgido também porque o documento final saído do Sínodo da Amazónia contém propostas muito interessantes e com quatro caminhos de conversão: "O caminho da renovação pastoral, cultural, ecológica e sinodal" - ou seja, a renovação para uma Igreja comunitária e não para uma igreja em que se está habituado "a que um mande e os outros obedeçam. A prática do Papa Francisco é a de decidir só depois de ouvir os outros e não se estava habituado a isto", argumenta..Se houver crise na Igreja, é uma crise de crescimento que terá de ser ultrapassada, como tantas outras foram. Aliás, na história da Igreja, Bento XVI não foi o único a renunciar, outros três papas o fizeram. O primeiro foi São Ponciano, em 235 d.C., depois São Celestino V, em 1294, e por fim Dom Gregório XII, que esteve no pontificado entre 1406 a 1415. Só que, agora, "quem renuncia está mais tempo numa situação de Papa emérito".."Bento XVI está há tanto tempo como emérito como Francisco ao comando da Igreja", lembra o vice-reitor da Universidade Católica Portuguesa, o padre José Pereira de Almeida, que defende o Papa emérito no sentido de ter tido sempre, desde que renunciou, "uma atitude de não se deixar manipular pelas vozes mais conservadoras", nomeadamente por alguns cardeais como Bourke e Sarah..Aliás, Pereira de Almeida conta um episódio, na altura noticiado, em que pouco depois de ter renunciado foi visitado por alguns cardeais que queriam criticar Francisco. "A sua atitude foi a de ligar ao Sumo Pontífice a dizer que tinha à sua frente algumas pessoas que queriam falar com o Papa, e ele já não o era, portanto ia passar-lhe o telefone. A situação deixou os outros boquiabertos e com algum mal-estar.".Por isso, diz, na minha visão, "tanto Bourke como Sarah não têm honestidade intelectual para se dar crédito ao que afirmam ou defendem. Facilmente, interpreto a situação de agora como uma manipulação que quiseram fazer da figura do Papa emérito". O vice-reitor acredita não haver "uma crise entre os dois papas", mas que se houver "ficará tudo igual. Só temos de reforçar a alegria e a energia à volta das propostas e das mudanças que o Papa Francisco defende para a Igreja".