Chocalhos bem afinados vão tocar na Namíbia

A arte chocalheira pode tornar-se, esta semana, património cultural imaterial da humanidade.
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"Está a ouvir? Ainda não está afinado." Ainda precisa de mais umas marteladas. Um ouvido não treinado não dá pela diferença, mas Francisco tem ouvido de músico e muita experiência em afinar chocalhos. Dá umas batidas, chocalha, bate mais um pouco até acertar no som pretendido. "Achava que os chocalhos eram todos iguais?"

Fazer um chocalho não é tarefa fácil. É uma arte e pode muito bem ser reconhecida pela UNESCO, nos próximos dias, como Património Cultural Imaterial da Humanidade, com necessidade urgente de salvaguarda, uma vez que está em vias de extinção. A reunião do comité da UNESCO inicia-se hoje, na Namíbia, e termina na sexta-feira. E, se tudo correr bem, no final vão ouvir-se chocalhos a celebrar.

Como um GPS para o gado

A arte e técnica do fabrico do chocalho remontam ao período romano. Este instrumento metálico produz um som característico e tem como principal função facilitar a localização do gado disperso pelas pastagens. São uma espécie de GPS dos animais, como costumam dizer os fabricantes. O tipo de chocalho varia com o tipo de gado, mas também com as pastagens por ele anda (e, por isso, também é diferente em diferentes épocas do ano). Além disso, os pastores gostam de ter um som próprio, para melhor identificarem os seus animais. São muitas variáveis a ter em conta - não, os chocalhos não são todos iguais, já deu para perceber.

Mas, nos últimos anos, com a redução da pastorícia e o desaparecimento da transumância, os chocalhos são cada vez menos necessários. Atualmente, dos 13 mestres chocalheiros que restam no país, quase todos na zona de Viana do Alentejo, nove têm mais de 70 anos e outros têm entre 30 e 40 anos, mas nenhum tem aprendizes.

Entre eles estão os primos Guilherme Maia e Francisco Cardoso, ambos com 41 anos, que são os dois sócios da Fábrica de Chocalhos Pardalinho, em Alcáçovas. O negócio está na família há mais de 100 anos e Guilherme lembra-se bem de, ainda miúdo, gostar de vir brincar para a fábrica: "Sentava-me à bigorna e estragava muitos chocalhos", ri-se. Além do pai, o mestre-chocalheiro José Maia, também a mãe trabalhava na arte: "Foi uma das poucas mulheres a fazer chocalhos, mesmo contra a vontade do meu pai, que nunca a quis ensinar", conta Guilherme. "Teve que ir aprender com outro mestre, o Gregório Rita" e acabou por ser ela a trazer para a fábrica algumas inovações, ligadas ao turismo, começando a fazer os chocalhos mais pequeninos ou até quadros e relógios a partir dos chocalhos.

Aos 15 anos, o pai fez um acordo com Guilherme: podia vi, sempre que quisesse, e ficava com o lucro da sua produção. O incentivo resultou. "Passava a semana à espera do fim de semana para poder vir trabalhar. O martírio não era trabalhar era ir para à escola." Até que, terminado o 12º ano, decidiu dedicar-se por inteiro ao negócio. Hoje, após a reforma do pai, os Chocalhos Pardalinho continuam a ser um negócio de família, mas com muitas dúvidas quanto ao futuro: "Pode ser que com esta candidatura a património apareçam jovens a querer aprender."

Pesar, enxambrar, afinar

Vamos, então, fazer um chocalho. Tudo começa com uma chapa de ferro, que é preciso cortar de acordo com o tamanho que se quer que o chocalho tenha. É nesta fase que se usa uma das poucas máquinas que é necessária no processo de fabrico: uma guilhotina. O retângulo de ferro é cortado novamente para ficar com a forma de um laço e é depois trabalhado e dobrado, numa bigorna, com um martelo, para dar forma ao corpo do chocalho. Tudo feito à mão. Um a um. Martelando daqui e dali. Dobrando para dar forma ao céu do chocalho, aplicando as pestanas do céu, colocando depois um reforço lateral (batente) ou um rebordo. Guilherme Maia vai mostrando chocalhos em estados diferentes do processo - "Como é tudo feito à mão, não há nenhum chocalho igual a outro", sublinha.

Temos o corpo já formado e vamos aplicar-lhe placas de latão. Nesta fase é preciso fazer contas. A quantidade de latão depende do peso do chocalho e é determinante para o som que se obtém. Depois, o chocalho é envolvido numa mistura de barro e palha, até ficar parecido com um ovo. E vai ficar a secar, ao sol e ao vento, durante uns dias ou uma semana (depende das condições meteorológicas) até estar bem seco. "Nós chamamos a isto enxambrar o chocalho, nem sei se essa palavra existe."

Enxambrado, pois, o chocalho, passa para o forno, onde vai ser cozido a 1250 graus. No momento em que saem do forno, é preciso rebolar os chocalhos, no chão, para que o latão fique bem espalhado sobre a sua superfície. São depois colocados em água fria para sofrerem um choque térmico. Tira-se a casca de barro e o chocalho é depois afinado e, por fim, polido, para ficar brilhante e bonito. É nesta altura que Francisco se senta novamente à bigorna a martelar o chocalho: "Está a ouvir? Ainda não está afinado."E depois já só faltam o badalo e a coleira, se for caso disso.

De 2,5 a 1000 euros

Não, os chocalhos não são todos iguais. Na fábrica Pardalinho produzem-se chocalhos com 50 ou 60 centímetros de altura para o gado bovino e outros que têm apenas 2,5 centímetros e são usados em porta-chaves e outras recordações. Mais uma vez, tudo feito à mão. Que o diga Vera Cardoso, mulher de Francisco, que está a aplicar coleiras nos minúsculos porta-chaves - uma encomenda especial, de última hora, feita pelo Turismo do Alentejo (um dos promotores da candidatura na UNESCO, em parceria com a Câmara de Viana do Alentejo e a Junta de Freguesia de Alcáçovas) que quer levar presentes para distribuir na Namíbia.

Os chocalhos não são todos iguais. Os mais baratos custam 2,5 euros, os mais caros (aqueles mesmo muito caros, que são trabalhados e têm todos os extras) podem chegar aos mil euros. Mas a verdade é que se produzem cada vez menos chocalhos para a sua função original.

O turismo é a grande esperança dos mestres-chocalheiros que ainda resistem. Na Pardalinho, fazem-se chocalhos que se destinam à decoração, chocalhos que são candeeiros e até chocalhos que são ímanes para pôr nos frigoríficos. "Andamos sempre a inventar", diz Guilherme Maia. À fábrica, na zona industrial de Alcáçovas, chegam autocarros de turistas que querem ver como se faz um chocalho e até já organizam workshops para quem queiram passar ali um par de horas e experimentar algumas das fases do fabrico.

Se a candidatura a Património Cultural Imaterial da Humanidade for aprovada, como tudo indica que será, haverá condições para prosseguir um plano de salvaguarda da arte chocalheira, organizar atividades com as escolas, dinamizar o Museu do Chocalho que também fica em Alcáçovas. "É preciso cativar a juventude", diz, determinado Guilherme Maia. Talvez ele possa dar uns incentivos, como os que o pai lhe deu. Ele ri-se. "Talvez."

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