Chineses e espanhóis controlam água de 1,3 milhões
Não é o negócio perfeito - as câmaras dizem que concessionar foi a solução para financiar investimentos no concelho, as operadoras alegam que só dá retorno a muito longo prazo - mas está claramente em expansão: o abastecimento de água de 2,3 milhões de portugueses está, neste momento, concessionado a operadores privados. Desses, 1,3 milhões estão na mão de empresas com capital estrangeiro (espanhol e chinês).
Muita água correu debaixo das pontes desde que, em 1994, Mafra se tornou a primeira autarquia a concessionar a gestão da água e saneamento do concelho. Os tipos de contratos mudaram. Apareceram mais operadores. E mais câmaras foram-se rendendo a estes negócios. Atualmente, são 38 as que têm o sector a ser gerido por operadores privados (ainda que alguns com apenas 49% da quota das empresas). Fazendo as contas aos habitantes, são 2 341 194 pessoas que, quando abrem a torneira lá de casa, estão a dar de ganhar a privados (das marcas AquAlia, Aquapor, AGS, Indaqua e Veolia). E, em 20 municípios, de norte a sul, 1 261 886 portugueses são clientes de empresas de capital estrangeiro, como as espanholas Aqualia e AGS (parcialmente detida pelo grupo Sacyr) e a chinesa Beijing Enterprises Water Group (que comprou, este ano, as operações da marca francesa Veolia em Portugal).
Como se chegou aqui? Foi um processo gradual, com uma motivação quase unânime entre mais de duas dezenas de câmaras ouvidas pelo DN: queriam investir na modernização e no alargamento das redes de água e saneamento mas não tinham condições financeiras para fazê-lo; por isso, cederam a gestão do serviço a operadores que ficavam responsáveis pelo investimento ou lhes pagavam rendas que financiavam essas obras. "Foi a solução possível para alargar as redes de saneamento a todo o concelho, sobretudo porque o Estado nunca encontrou soluções, como a possibilidade de acesso a fundos comunitários", explica o município de Vila de Conde, numa resposta por escrito.
"O município não tinha alternativa"
O presidente da Câmara Municipal de Santo Tirso, Joaquim Couto, também diz que a concessão foi assinada a contragosto. "Na altura [1998], o município não tinha alternativa, em virtude de não ter acesso a fundos comunitários e a banca não financiar o investimento. É claro que o enquadramento político, jurídico e financeiro existente nos anos 90 criou as condições objetivas para a privatização do sector", aponta.
Ainda assim, a maior parte dos municípios diz que concessionar foi benéfico. Matosinhos, Fundão, Alenquer ou Elvas falam quase em uníssono do "salto qualitativo ao nível da gestão eficiente" dos respetivos sistemas de água e saneamento. E as concessionárias subscrevem a tese. "Tem-se melhorado muito o serviço em Portugal nos últimos anos. Isso é algo inequívoco", assinala o CEO da Indaqua, Pedro Montalvão.
É claro que nem todos fazem um balanço positivo. Causaram polémica os contratos que impunham uma fasquia de "consumo mínimo" que teria sempre de ser paga pelo município e ficava muito para lá do gastos médios da população - como nos casos de Barcelos, Marco de Canaveses ou Paços de Ferreira (ver pág. 11). Com um contrato de 1996, agora em fase de renegociação, Ourém também critica o facto de lá "não existirem mecanismos sancionatórios" para os "atrasos sistemáticos da concessionária" no cumprimento do plano de investimentos.
A principal queixa das populações tem sido o aumento galopante dos preços nos serviços concessionados. "É um problema nacional e irreversível", admite Silvino Lúcio, vice-presidente da Câmara Municipal da Azambuja. Já os municípios de Fundão e Elvas lembram que "o que mais tem contribuído" para encarecer a fatura "têm sido os valores cobrados [pela captação de água] em alta" [que depois é redistribuída, em baixa, aos consumidores]. "Os preços têm sido a grande dificuldade. Temos procurado consciencializar os cidadãos de que a fatura visa cobrir os investimentos", assume, por sua vez, o presidente da Câmara Municipal de Santa Maria da Feira, Emídio Sousa, recordando que a concessão local foi contratualizada por 50 anos (até 2049) "para evitar um tarifário muito elevado".
"Concessões têm de suportar custos"
Na maior parte dos casos, os contratos duram, sim, 20 a 30 anos. Este sector "é para corredores de fundo e não para sprinters", explica Pedro Montalvão, frisando: "As concessões são um negócio com retorno a muito longo prazo". De resto, tal como o CEO da Indaqua, também as outras concessionárias consideram "um mito" a questão da subida de preços quando a água passa para gestão privada. "Todas as concessões, através das suas receitas, têm de suportar todos os custos. Caso contrário, seriam os acionistas a suportá-los, ou seja, a título de subsídio. Este não é o princípio de uma empresa", alega a AGS, numa resposta por escrito.
Já Diogo Faria de Oliveira, administrador da Aquapor, lembra que "as tarifas decorrem da maior ou menor necessidade de investimento". E diz que é isso que justifica as diferenças de tarifas entre as concessões do grupo na Batalha e no Planalto beirão (Carregal do Sal, Mortágua, Santa Comba Dão, Tábua e Tondela) - menos de um euro por metro cúbico (m3)no primeiro caso e mais de dois no segundo. "Na Batalha, a tarifa é de prestação de serviços e o investimento está a cargo da câmara. No Planalto, havia um forte plano de investimentos, de 30 milhões de euros (financiado em 23 milhões pela Aquapor) para a construção de uma barragem, de uma estação de tratamento e da interligação dos municípios à estação", esclarece.
Perante isto, as reações são bem diferentes. O município da Batalha faz um balanço positivo, porque o pagamento de uma renda de cerca de 500 mil euros nos dois primeiros anos e de 100 mil euros do 3.º ao 10.º ano "permitiu a realização de importantes investimentos no sistema de abastecimento de água". Já o presidente da Câmara de Carregal do Sal, Rogério Mota Abrantes, lamenta que a concessão "tenha repercutido nos consumidores custos significativamente mais elevados (quase o dobro)". E promete que, "apesar das limitações, tudo irá ser feito" para lutar contra essa situação.
Este é, aliás, um ponto comum nas câmaras insatisfeitas: todas dizem querer lutar contra as condições adversas. "Receamos um novo aumento da fatura e tudo faremos para o impedir", assevera o município de Gondomar. E todos (os que ainda não as têm) se mostram interessados em oferecer tarifas sociais. "A tendência é que todas as entidades tenham tarifas familiares e sociais. Uma recomendação da ERSAR, de 2009, obriga que todas as concessões as passem a ter", recorda Faria de Oliveira.
Certo é que, quase duas décadas depois da primeira concessão a privados, já se pode aprender com os erros e fazer um balanço. Por exemplo, Oliveira de Azeméis (que está a transferir os serviços para a Indaqua, que os vai gerir a partir de março de 2014) "garantiu que o tarifário não seria agravado no ano um da concessão" e definiu "uma fórmula de atualização em função da evolução da inflação e das tarifas em alta, para os anos seguintes", revela o presidente, Hermínio Loureiro. E, em Alcanena, palco do primeiro contrato de concessão a terminar (em 2016), o próximo passo já "está em fase de avaliação" pela autarquia, revela o vereador Hugo Santarém. Seja a renovação do contrato, um novo concurso ou a remunicipalização marcará uma nova fase da história das concessões da água em Portugal.