Chile. Quase no fim da estrada mais longa do mundo

Mala de viagem (39). Um retrato muito pessoal do Chade.
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Na rodovia "Panamericana", vindo do Norte, o Chile é o penúltimo país, antes da Argentina, que é o fim da considerada "estrada mais longa do mundo". A Rota 5 é a principal artéria de comunicação terrestre do país. Percorre aproximadamente 3000 quilómetros da fronteira com o Peru até à cidade de Quellón, cruzando catorze das dezasseis regiões em que o país está dividido. Percorri um troço desde Santiago. Ao passar pela capital do Chile, a "Panamericana" é concessionada à Autopista Central, uma rodovia urbana de alta tecnologia, que cruza Santiago, de norte a sul, através de dois eixos de estradas de alta velocidade. Segui de Santiago até Valdivia, 835 quilómetros a sul da capital, porque Valdivia se associa ao conquistador espanhol Pedro de Valdivia, que fundou Santiago a 12 de fevereiro de 1541, com o nome de "Santiago de Nueva Extremadura", entre os dois braços do rio Mapocho. A viagem foi feita durante dois dias até chegarmos à cidade mais afetada pelo maior terramoto já registado, ocorrido em 1960, com 9,5 pontos na escala Richter. Estima-se que a cidade tenha afundado cerca de 2 metros após esse fenómeno. Não por acaso, no Chile, eu senti a memória de Allende, de Neruda, de Jara e de tantos outros. Eu, com as imagens brutais do golpe de Pinochet bem gravadas no pensamento e um livro para ler, "Jogos de Vida e Morte", de Ben Richards. Trata-se de um romance em que uma fotógrafa de vinte e nove anos, que vivera toda a sua vida em Inglaterra, mas o Chile tinha sido o país que a vira nascer e que ela, juntamente com a família, fora forçada a abandonar em 1973, aquando do golpe militar perpetrado pelo general Pinochet e que derrubou o Governo de Allende. E voltara, volvidos três décadas. A propósito, veio-me à memória um outro livro, este de Jorge Timosi, que eu comprara num alfarrabista em Portugal: "O Combate do Presidente Allende" narra, ao pormenor e dramaticamente, os últimos momentos da democracia chilena, editado um ano depois do golpe. O livro de Ben Richards também refere esse acontecimento. Impressionante é uma das frases derradeiras de Allende: "Continuarão a ouvir-me, estarei sempre ao vosso lado." Os homens são aquilo que o seu tempo é, refere o autor do livro que, naquela passagem pelo Chile, me acompanhou por um país cuja curta extensão leste-oeste, em relação à sua longa extensão norte-sul, faz com que ele se torne o mais estreito do mundo, mas não estreito de paisagens e história, esta, porém, nem sempre feliz. Pelas páginas que li de "Jogos de Vida e Morte", soube dos estabelecimentos comerciais no centro da cidade de Valdivia, que servem bolos e café com natas batidas, e ainda de um mercado cheio de camarões, mexilhões, amêijoas, machas, ouriços, "loco" e "picoroco". Em Santiago, o chef de cozinha do hotel tinha-me falado da influência dos imigrantes alemães do século XIX na gastronomia valdiviana. As frutas introduzidas, como a murta ou a amora, são usadas para a confeção de licor, mistela e geleia, e as maçãs são usadas para o "küchen", "strudel", "stollen" e "streuselküchen". As frutas silvestres da floresta valdiviana vão diretamente para a confeção de doces de chocolate, assim como para as conservas. A partida para Valdivia já levava água na boca.

Jorge Mangorrinha, professor universitário e pós-doutorado em turismo, faz um ensaio de memória através de fragmentos de viagem realizadas por ar, mar e terra e por olhares, leituras e conversas, entre o sonho que se fez realidade e a realidade que se fez sonho. Viagens fascinantes que são descritas pelo único português que até à data colocou em palavras imaginativas o que sente por todos os países do mundo. Uma série para ler aqui, na edição digital do DN.

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