Cheira a Trump
1 O homem é feio, o homem é bronco, o homem não é inspirador, o homem nem sequer é homem porque faz questão de ser besta. Besta, bestial, the best - pensam os americanos, os mesmos que elegeram e reelegeram um presidente negro e agora são bem capazes de o substituir por um racista. Não inspira multidões, arrasta-as. Da frustração coletiva para o desastre anunciado. Não podem ser todos idiotas, não podem ser cegos, surdos e mudos, não podem negar o que todos veem. Mas o facto é que só a América, para trocar Obama por Trump.
Da tese para a antítese, o tipo baril pelo barril de pólvora, o tolerante pelo arruaceiro, o apaixonado pelo revoltado - assim, a sangue-frio, sem outro no meio, sem intervalo, o "Yes, we can" dá lugar ao "yes, we kill them". Pelo menos na Europa a coisa acontece de forma mais lenta, os regimes também estupidificam mas com o tempo: duas décadas por exemplo, que é o prazo de maturação da Frente Nacional dos Le Pen franceses.
Nos Estados Unidos tudo é possível e extraordinário. Mesmo o que seria impensável - o Papa a censurar um político a meio de um período eleitoral; um ex-diretor da CIA a admitir a desobediência dos militares. E a CNN atualiza sondagens. E Trump dispara, bate todos os adversários, deixa o mais próximo a 30 pontos de distância.
Não é extraordinário?! O homem pode ser vetado no Vaticano, boicotado no Pentágono - e os eleitores, 49% deles, acham que é bom ter um presidente pela Igreja excomungado e pelo Exército desautorizado. Haverá algo mais antissistema? Trump é milionário, Trump é reacionário, Trump é inconveniente com as mulheres, politicamente incorreto, porque será assim tão desejado?
2 Porque hoje é terça, mas não é uma terça-feira qualquer, 16 Estados vão, ao que tudo indica, tornar imparável o furacão que entrou de rompante na política americana, ocupou o centro, pôs todos os outros candidatos a falar dele e dos temas que ele quer. Só pode uma grande frustração coletiva explicar esta expressão: Trump é visto, entre os pré-candidatos Republicanos, como o que está mais bem preparado para resolver os problemas do país e para assumir o cargo de comandante supremo das Forças Armadas. A maioria (35%) classifica-o como o mais fiável.
A tentação do moralismo é enorme, podemos até arrumar a explicação do absurdo na forma mais simples de definir o populismo: idiotas que aparecem com fórmulas fáceis para questões demasiado complexas. Trump já nos deu um milhão de razões para o catalogarmos - e, aparentemente, para os americanos votarem em todos menos nele.
Está a acontecer o contrário. Em dezembro sugeriu o assassínio premeditado e deliberado das famílias dos terroristas. No mês passado propôs "técnicas de interrogatório" mais agressivas aos prisioneiros, porque "a tortura funciona". Explicou a construção do muro junto à fronteira com o México, porque "eles enviam-nos violadores e traficantes de droga". Coisas de pôr os cabelos em pé - e as intenções de voto nele também.
Não sei se há ciência política preparada para explicar o fenómeno. Há quem endosse culpas aos próprios Republicanos - que, nos dois mandatos do presidente Obama foram eles próprios agentes de uma radicalização que bloqueou o Congresso e alimentou o sentimento de insegurança na população. Há os esperançados, que acreditam piamente que na hora da verdade o povo americano terá bom senso. E há ainda o grupo dos desesperados que, como dois ex--presidentes mexicanos, o comparam a Hitler e temem o pior.
Se pensávamos que a desaceleração da China é um problema, se estamos preocupados com a crise dos países que, como Angola, dependem do petróleo, se achamos que o caos brasileiro é altamente inconveniente, se pensamos que a Europa tem uma bomba-relógio chamada refugiados e outra prestes a detonar com a possível saída do Reino Unido - então nem é bom pensar o que significa a Casa Branca habitada por aquele louco.
Nesta superterça, a superpotência, a única que resta, vai decidir neste dia crítico das primárias quantos dos 660 delegados republicanos vai o milionário excêntrico conquistar. Cheira que muitos. Cheira que a maioria dos eleitores. O que não cheira nada bem. Já cheira a Trump em Washington e Fed em Nova Iorque.
A verdade é que, depois do Lehman Brothers, nunca os Estados Unidos estiveram tão perto de fazer mal ao mundo como agora.