Chegou a altura de negociar com a Síria?

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Numa reviravolta extraordinária, amplamente ignorada pelos meios de comunicação ocidentais, o segundo maior grupo extremista islâmico que combate o regime da Síria parece ter mudado de atitude. O Jabhat-al-Nusra, que representava a Al-Qaeda na Síria, obteve a autorização do chefe da Al-Qaeda, Ayman al-Zawahiri, para cortar as suas ligações à organização mãe e integrar a corrente principal da resistência síria ao presidente Assad. E mudou de nome para Jabhat Fatah al-Sham, ou seja, Frente de Conquista da Síria.

No mês passado, o dirigente do grupo, Abu Mohammed al-Jolani, apareceu pela primeira vez num vídeo para fazer o anúncio de que a cisão tinha como finalidade eliminar qualquer "pretexto" para que os Estados Unidos e a Rússia continuassem a bombardear os rebeldes islâmicos.

Alguns peritos ocidentais viram nisto nada mais do que uma tentativa de conquistar a liderança por parte do movimento jihadista que se opõe ao Estado Islâmico (ISIS), senão mesmo um estratagema para enganar os políticos ocidentais e russos. O diretor dos Serviços Nacionais de Informação dos Estados Unidos, James Clapper, descreveu esta cisão como "um gesto de relações públicas (...) pretendendo criar uma imagem de maior moderação". O Departamento de Estado norte-americano praticamente nem comentou o acontecimento.

No entanto, um dos aspetos positivos é que o Jabhat tem sido principalmente uma frente islâmica nacionalista - mesmo o seu novo nome inclui a palavra Sham ou Síria - em vez de uma designação jihadista global. Não participou na jihad global nem nenhum dos seus ativistas foi considerado responsável pelas recentes campanhas bombistas na Europa.

Colocado perante dois extremos - o regime assassino de Assad, por um lado, e o igualmente assassino Estado Islâmico por outro, qualquer deles abominados pelo Jabhat - a relativa popularidade do Jabhat no Norte da Síria significa que os sírios veem nele uma força islâmica nacionalista semimoderada, mais do que um grupo jihadista global como o Estado Islâmico.

Ao contrário do ISIS, que exige a sujeição absoluta dos habitantes de qualquer território por ele conquistado ("rende-te ou serás executado"), o Jabhat tem vindo a cooperar com outros grupos anti--Assad, adotado uma versão ligeiramente mais tolerante da lei islâmica nos seus territórios, não tem apoiado a escravatura das mulheres e tem-se comprometido a não atacar alvos no Ocidente. Além disso, os combatentes do Jabhat são quase totalmente sírios e lideram atualmente os rebeldes na sangrenta batalha pelo controlo de Aleppo, que poderá representar o ponto de viragem na guerra civil.

O que o Jabhat poderá estar a oferecer é uma forma mais nacionalista do extremismo islâmico, tal como fazem os talibãs no Afeganistão - algo que não é obviamente a resposta perfeita mas que é melhor do que aquilo a que assistimos presentemente com o Estado Islâmico.

A mudança de atitude do Jabhat deveria ser vista a uma luz mais positiva - por exemplo, como um possível esforço para participar nas conversações promovidas pela ONU em Genebra e atualmente num impasse, conversações das quais o Jabhat foi banido pelos Estados Unidos por se tratar de um grupo terrorista. O Ocidente tem de reconhecer que no terreno não existem grupos sírios seculares democráticos significativos a combater o EI nem o regime de Assad - além dos curdos, que dispõem de meios limitados e que não podem efetivamente levar a sua luta ao coração árabe da Síria.

Quando os sírios seculares analisam as opções existentes na oposição veem apenas as más e as muito más - razão pela qual o presidente Assad conta ainda com algum apoio. Entretanto, é do conhecimento geral que vários Estados árabes, incluindo a Arábia Saudita e o Qatar, têm ajudado secretamente o Jabhat.

O que Estados Unidos, Ocidente e Estados árabes terão de acabar por aceitar é que um eventual cessar-fogo ou mesmo um cessar--fogo parcial e futuras conversações de paz vão ter de incluir os grupos islamitas. Os russos, que levantarão as maiores objeções, terão de acabar por aceitar esta realidade. O Jabhat é o grupo mais forte no terreno a enfrentar o EI.

Para minar o ISIS e conseguir chegar a um cessar-fogo, os negociadores das Nações Unidas deverão autorizar todos os grupos opositores a sentarem-se à mesa, mas excluindo o ISIS, desde que eles aceitem determinadas condições - um compromisso com a paz, um entendimento político, a proteção das minorias muçulmanas e não muçulmanas e alguma forma de governo democrático.

O Jabhat não fez até agora nenhuma declaração nesse sentido, mas cabe igualmente às potências exteriores convencê-lo a fazê-lo e dar-lhe algum encorajamento deixando claro que, se o fizer, o Ocidente encarará esse gesto com simpatia.

O Jabhat cresceu na Síria devido aos objetivos sem cedências tanto por parte do Estado Islâmico como de Assad, nos dois extremos do espetro político, e à inexistência de uma força moderada no meio do conflito. Os cinco anos de guerra civil, com os seus 350 mil mortos e milhões de deslocados, apenas poderão chegar ao fim se for usada a imaginação e se se correrem alguns riscos no processo de paz.

Jornalista paquistanês

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