Chegar à razão do outro
Chegar à razão do outro, entrar nela, viver nela, para melhor encontrar forma de sair dela. Essa é a minha noção de debate, de discussão política, de confronto. Não me atrai tanto o choque exuberante de razões, as duas em força, brilhantes, sem espaços, como um braço-de-ferro onde só um pode ganhar, onde só um esmaga o braço contra o tampo de uma mesa. De alguma forma, isso não é debate, é exibicionismo, representação. O que me atrai é a sedução da razão do outro, a lenta caminhada do outro até nós, começar onde ele começa e, através dos seus pressupostos, tentar trazê-lo até mim, desfazendo o novelo, provando a minha razão. Há quem lhe chame brandura, mas gosto de pensar que é sedução, conceito que não tem por que estar afastado da política - que não pode, aliás, ser afastado.
Não estou certo de que assim se ganhe debates, porque o veloz tempo da política quase desaconselha o lentor, como que nos obrigando a concluir sem explicar, a refutar sem apresentar, a negar por negar, tudo muito depressa, sem tempo. Não é por isso uma receita para ganhar, para impor, mas é o meu método de debate, a minha regra de atuação, talvez porque essa predisposição para o outro e para a razão do outro se tenha tornado essencial na minha geografia familiar - uma espécie de instrumento sem o qual se teria tornado impossível conviver, estar, amar. É que à minha mesa se juntam, e sempre com vontade de debater, todos os pontos cardeais que a política permite: há de tudo na minha família, e ainda bem, e com intensidade.
A sedução converteu-se, pois, num começo de ordem, um protocolo, um salvo-conduto, algo capaz de nos manter à mesa até ao último café e depois dele, o tempo suficiente para perceber, em debate, em confronto, que as pessoas são muito mais complexas, densas, contraditórias, do que aquilo que os perfis políticos costumam traçar, que há demasiado artifício a separar-nos do essencial, que nenhum de nós é completamente tudo, coerentemente desenhado para caber numa forma, num ideal. Não fosse esse instrumento e não passaríamos do prato de sopa, a fazer juízos de valor uns sobre os outros, a despejar ativismo, a julgar, cada um do seu lado.
Esse protocolo, para não me repetir tanto com a ideia de sedução, tornou-se em mim vocacional. Descobri-lhe um sentido além do instrumental, como se o ar que respiramos fosse não só o ar que respiramos, a necessidade, mas o ar que gostamos de respirar, que nos apetece, uma escolha. Nasce aí a minha vontade de seguir direito, para persuadir, para alegar, e é com certeza daí que vem a minha aproximação à política, não tanto pelo proselitismo mas pelo prazer na tentativa de convencer, de aliciar. Cheguei a temer, até me ter realizado tanto no trabalho executivo, só gostar de política por isto.
Perceber que há mais justiça além da nossa, que há um mundo em cada um de nós, não é uma tergiversação, como se fossem indiferentes as ideias, os partidos, a ideologia, como se os princípios, a doutrina, fossem irrelevantes, tudo sujeito a acordo, contemporização. Não se trata de nada disso. É antes a convicção de que há um espaço imenso, aberto, para o encontro de razões, de que é possível chegar a quem está do lado de lá: o primeiro erro de um político é não perceber isso, é pôr-se a falar apenas para os seus, é não perceber que aqueles a quem pedimos o voto, a quem queremos convencer, trazem mais mundos dentro de si do que aquilo que um rótulo permite, que não podem ser arrumados em gavetinhas. Lembro-me sempre do repto de Francisco Lucas Pires quando penso nisto: devemos olhar para o partido com os olhos do mundo e não olhar para o mundo com os olhos do partido.
Advogado e vice-presidente do CDS