CHE, SIEMPRE

Publicado a
Atualizado a

Chemania. A 9 de Outubro de 1967, cumprem-se terça-feira 40 anos, um sargento do exército boliviano matava, em La Higuera, Che Guevara. A expressão que Korda tinha fixado sete anos antes, sem suspeitar que aquela iria ser a foto do século XX, seria transformada por Fitzpatrick num ícone eterno da juventude

CHE, SIEMPRE

"De poster em poster a tua imagem paira na sociedade de consumo / Como o Cristo em sangue paira no alheamento ordenado das igrejas." Os versos de Sophia de Mello Breyner Andresen são uma síntese perfeita do ícone maior do século XX. Numa leitura cínica, até se podia dizer que o capitalismo comercializou o comunismo.

A imagem do negativo que Alberto Korda (1928-2001) captou com a sua leica, a 5 de Março de 1960, durante o funeral de 136 cubanos vítimas da explosão, no porto de Havana, do barco La Coubre, cheio de explosivos para os opositores ao regime castrista, esteve sete anos no esquecimento. O fotógrafo reenquadrou o fotograma de Che Guevara - na altura com 31 anos e aquela barba desleixada que prejudicaria a indústria de lâminas -, de onde retirou as folhas de palmeira e um perfil desnecessário. Fez uma cópia para si e pendurou-a na parede do seu estúdio.

Quando o famoso editor italiano Giangiacomo Feltrinelli - que já tinha publicado o manuscrito do Doutor Jivago, esse romance de Pasternack proscrito por Estaline, e O Trópico de Câncer, o livro então maldito de Henry Miller -, depois de conseguir, através de Régis Debray, o intelectual mais amigo de Cuba, o Diário da Bolívia de Guevara, foi a Cuba procurar imagens do Che, então ainda vivo. Nesse Verão de 1967, entra no estúdio do fotógrafo cubano, que lhe diz ser aquela a melhor imagem que tem do guerrilheiro. O editor pede--lhe duas provas, regressa a Itália e faz um poster a anunciar a estreia mundial do livro, colocando um copyright da sua livraria no canto do cartaz e ignorando o nome de Korda. Ninguém suspeitaria ainda que aquela viria a ser considerada "a mais famosa foto do mundo".

Meses depois do desaparecimento do símbolo da luta anticapitalista, abatido por um sargento do exército boliviano em La Higuera (onde tem agora estátua e se tornou adorado como um santo popular), no dia 9 de Outubro de 1967, a imagem de Che expandia-se com a rapidez com que ele gostaria de ter exportado a revolução comunista.

Em 1968 - ainda havia ecos dos provos de Amesterdão, enquanto os soixante-huitards de Paris proclamavam "a imaginação ao poder" e os hippies de S. Francisco o "make love not war" -, Jim Fitzpatrick, um artista irlandês radicado nos Estados Unidos que se dedicava sobretudo às pinturas em torno da mitologia céltica (é também autor de capas de discos dos Thin Lizzy e de Sinéad O'Connor), fazia uma gravura com base na foto de Korda em várias versões: a preto e branco, a negro e vermelho, com estrela encarnada. Mesmo se restam dúvidas sobre a hipótese de a imagem lhe ter sido fornecida por Sartre - o filósofo que definiria Che como "o ser humano mais completo da nossa época" -, Fitzpatrick imortalizava também o seu nome na História.

Daí até se tornar um dos emblemas do Maio de 68, em Paris - onde se gritava, em jeito de slogan, "Le Che est vivant !" ( 'Che vive !') -, e ícone das manifestações contra a guerra do Vietname foi um instante. Depois, aquela imagem passou a multiplicar-se em T-shirts e pins, notas e selos, maços de cigarros e latas de cerveja, matrioskas e biquinis, publicidade a vodka e a automóveis, com o rosto do Mickey ou de Aznar.

A chemania nunca mais parou. Da poesia - Sena e Torga, Eugénio e Fiama, Ramos Rosa e Alegre, para só citar alguns, poucos, portugueses - ao cinema - apesar da imagem estereotipada de Che em A Cortina Rasgada, de Hitchcock, o filme mais importante é Diários de Che Guevara, de Walter Salles.

Na música, então, mesmo se toda a gente começa logo a trautear Hasta Siempre Comandante, a canção de Carlos Puebla com inúmeras versões (de Joan Baez a Nathalie Cardone, do rock ao rap), há quase centena e meia de composições dedicadas ao argentino que se tornou herói nacional de Cuba. É natural que alguns dos músicos que aproveitaram Che para as suas letras tenham sido Víctor Jara, Quilapayún, Yupanqui, Pablo Milanés, Silvio Rodríguez. E, no entanto, o seu nome aparece nos temas mais imprevistos: em Indian Girl Mick Jagger canta "Mr. Gringo, my father he ain't no Che Guevara"; Panic In Detroit, de David Bowie, começa com "he looked a lot like Che Guevara"; em Left To My Own Devices, dos Pet Shop Boys, ouve-se "Che Guevara and Debussy to a disco beat". Sem esquecer que a capa de American Life, de Madonna, é inspirada na foto de Korda e que a gravura de Fitzpatrick surge em Bombtrack, o single de estreia dos Rage Against the Machine.

Aparentemente, Andy Warhol, o artista plástico que tanta atenção dedicava à cultura de massas, tinha de fazer com Che o mesmo que fez com Marilyn e Mao. O seu colaborador dilecto, Gerard Malanga, então na Europa e percebendo o potencial negócio, antecipou-se, mas quando percebeu que o galerista de Roma, onde ia mostrar uma serigrafia de Che alegadamente criada pelo seu amigo, pretendia confirmar a autoria da obra, telefonou para a Factory e pediu a Warhol para a assumir.

Desde então nunca mais parou a criatividade dos artistas sobre a imagem de Korda, de fotógrafos como Annie Leibowitz ou Martin Parr a pintores como Alfredo Rostgaard ou Vik Muniz - sem esquecer Pedro Meyer, que criou uma nota de cinco dólares com Che no lugar de Lincoln. E, nos últimos anos, tem percorrido mundo a exposição Revolution & Commerce: The Legacy of Korda's Portrait of Che Guevara, cujo catálogo se intitula Che Guevara: Revolutionary & Icon.

Actualmente, o emblema das FARC colombianas e dos zapatistas mexicanos já é tão reconhecível que se percebe a ironia de Matthew Diffee, que publicou, na revista The New Yorker, um Che com uma T-shirt do Bart Simpson. No fundo, se o pugilista Mike Tyson e o futebolista Maradona têm o corpo tatuado com a imagem de Korda/Fitzpatrick, para as novíssimas gerações talvez ainda continuem a fazer sentido os versos de Sophia: "Em frente do teu rosto / Medita o adolescente à noite no seu quarto / Quando procura emergir de um mundo que apodrece." |

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt