Chalana. O génio humilde e altruísta que cabia no grande Benfica dos anos 60

O livro "Chalana, a Vida do Génio" conta várias histórias do antigo jogador do Benfica e da seleção nacional, hoje com 60 anos. Entre os muitos testemunhos estão elogios de António Simões, Rui Costa, Nené, Toni e Álvaro Magalhães. Obra é lançada esta segunda-feira.
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No preâmbulo do livro, Luis Lapão, o autor, avisa que atualmente "é possível sabermos ou lembrarmos de um momento para o outro, e com incrível facilidade, o essencial sobre a vida de Chalana ou de outra figura qualquer". E que por isso o seu objetivo ao escrever este livro foi "acrescentar algo de novo à história do herói, quanto mais não fosse uma maneira diferente de a apresentar". A obra, editada pela Prime Books, é lançada esta segunda-feira ao final da tarde, no camarote presidencial do Estádio da Luz.

"Chalana, a Vida de um Génio" não é uma biografia comum, nem uma história. São várias histórias contadas pelo autor, que é curador do Museu do Benfica, com a ajuda de Fernando Chalana e testemunhos de dezenas de pessoas ligadas ao antigo jogador do Benfica, de ex-colegas de equipa a amigos e familiares, que falam das memórias mais marcantes, desde os tempos do Barreiro ao Benfica, passando por França.

"Cingi‑me particularmente ao período entre 1974 e 1977, correspondente às duas primeiras épocas de Chalana no Benfica (1974/75 e 1975/76), ainda júnior, e à sua primeira época de sénior (1976/77). Estas três temporadas, que - de forma alternada com outros registos da narrativa - procurei esmiuçar ao longo do livro, retratam o período menos documentado bibliograficamente e menos conhecido do público em geral (referente à formação do craque) e a primeira época de Chalana como sénior (representativa da sua afirmação precoce e ascensão plena ao estatuto de fenó‑ meno, com apenas 17 anos). Ou seja, podemos falar de um livro que, em matéria de História convencional, tem o seu foco no nascimento do génio", descreve Luis Lapão.

Grande parte do livro contém testemunhos de antigos colegas de equipa no Benfica. Mas não são simples testemunhos, pois o autor fez questão que fossem eles próprios "os verdadeiros atores da história, que assumem o papel de narradores ao lado do herói [Fernando Chalana], também ele omnipresente nesta viagem pelos meandros das suas memórias". Nas várias entrevistas feitas, o pequeno genial esteve presente.

A obra relata os tempos em que Chalana jogava nas camadas jovens da CUF e como chegou ao Benfica, numa altura em que também o Sporting estava de olho no míudo esquerdino. "Foi na época de 1973/74 que despontou o romance entre o clube da águia e o jogador, com Mário Coluna a observá ‑lo no Barreiro, após indicações de um grande benfiquista: Edgar Ferreira. Tinha‑o igualmente na mira o rival Sporting, com o especial patrocínio de Juca, então treinador do Barreirense e antiga glória leonina. Precisamente num particular da equipa de Juca com o Oriental, em Marvila, Pavic sentou ‑se na bancada para confirmar tudo o que de bom sobre o miúdo se dizia. O jugoslavo não precisou de mais do que meia dúzia de minutos: Contratem -no! No dia 21 de setembro, deslocam‑se ao Barreiro Osvaldo Branco e Ilídio Fulgêncio. Tudo acertado. Da camisola de riscas brancas e vermelhas, Chalana passa à de vermelho integral. A transferência, porém, não deixa de gerar alguma celeuma. Por um lado, o descontentamento de alguns adeptos do Barreirense - tal como já havia acontecido nas saídas de Adolfo e Bento -, ao verem escapar ‑se ‑lhes o seu tesouro; por outro, o desagrado da família pela forma como terá sido feito o negócio, sem o envolvimento pleno dos pais e a adequada compensação financeira", escreve o autor.

Fernando Albino Sousa Chalana, hoje com 60 anos, representou o Benfica entre 1975 e 1984, e depois novamente entre 1988 e 1990. O seu pé esquerdo fez furor no clube da Luz e também pela seleçao nacional, sobretudo no Euro 1984 em França. Alem do Benfica, representou também o Bordéus. Aliás, foi o dinheiro desta transferência que permitiu ao Benfica concluir as obras do famoso terceiro anel do velhinho Estádio da Luz. Em Portugal, como profissional, e já em final de carreira, vestiu ainda as camisolas do Belenenses e do Estrela da Amadora.

"O desconcerto das suas fintas em velocidade, o seu pé esquerdo único que maravilhou o país e o mundo e o seu amor ao Benfica são marcas inscritas nas nossas memórias e na história do Benfica. O nosso pequeno genial era tão grande que até é difícil traduzir em palavras a magia do seu potencial futebolístico, o receio dos seus adversários perante a imprevisibilidade da finta curta e o encantamento provocado pelas suas exibições pelo Benfica ou pela seleção nacional [...] Chalana está nos corações de todos os que tiveram a oportunidade de o ver jogar, a sua grandeza é parte integrante do património histórico do Sport Lisboa e Benfica e o seu estatuto de ídolo das multidões continua a ser inspiração para os mais jovens", escreve Luís Filipe Vieira, presidente do Benfica, na introdução da obra que tem mais de 300 páginas.

Aqui ficam alguns dos muitos testemunhos do livro, conversas em que Fernando Chalana esteve sempre presente.

ANTÓNIO SIMÕES: "Ele e a bola são o futebol. A bola agarrava‑se a ele!"

"Ele foi um génio! Eu fui um ótimo jogador, mas o Chalana foi melhor do que eu. Lembro‑me de o ver jogar e de pensar: 'Ele e a bola são o futebol'. A bola agarrava ‑se a ele! [...] Sem dúvida que o Futre apresentava o mesmo nível do Chalana em termos de espontaneidade e surpresa. Mas a genialidade do Futre não se manifestou de forma tão capaz na leitura do jogo. A relação do Chalana com o jogo era mais abrangente. O Futre concentrava a sua genialidade na relação com a bola. Ele e a bola eram o espetáculo. Já o Chalana e a bola conseguiam ser duas coisas: espetáculo e jogo.

Se pensarmos em todos os jogadores que passaram pelo Benfica nos últimos cinquenta anos, poucos teriam lugar naquela equipa dos anos sessenta, sobretudo do meio campo para a frente [...] Tive essa conversa com o meu querido Eusébio algumas vezes. E ambos concordámos que só havia dois jogadores capazes de integrar esse sexteto: Chalana e João Vieira Pinto.

Eu vejo no Chalana a grande figura do Europeu de 1984, tal como vejo em Eusébio a grande figura de Portugal no Mundial de 1966. Esses dois momentos assinalam, sem dúvida, a consagração de ambos, no Mundo e na Europa, respetivamente. A diferença entre os dois foi apenas uma questão de escala, dado falarmos de provas com alcances diferentes. Neste aspeto, o Eusébio ganha-lhe. Mas o nível de protagonismo e de importância de cada um deles em cada uma dessas seleções é equivalente.

Só tive pena de não ter visto o Chalana no Mundial de 1986, porque sei que teria sido fantástico. Foi essa a consagração que lhe faltou. Ou seja, a consagração definitiva e global que merece qualquer jogador com as características singulares de um Chalana ou de um Eusébio."

RUI COSTA: "No futebol de hoje, lutaria pela Bola de Ouro"

"Tinha nove anos. Já jogava nas escolinhas do Benfica e era um dos apanha‑bolas nos jogos dos seniores - sinto, aliás, uma grande vaidade em poder afirmar que fui apanha‑bolas no tempo do Chalana e dos que jogaram com ele. Costumava ficar do lado do terceiro anel antigo, que era, como se costumava dizer, o lado dele, porque, na parte do jogo em que ele estava desse lado, o campo inclinava ‑se de forma estonteante para a baliza do adversário.

O Chalana era o génio. Era ele quem levantava as bancadas! Às vezes, até, sem ser preciso tocar na bola! Foi o único jogador que eu conheci que fintava os adversários sem tocar na bola! Quanto a tinha, alguma coisa ia acontecer! Era ele quem nos dava esperança quando as coisas se complicavam. Normalmente, quanto mais difícil estava o jogo, mais ele aparecia, mais inspirado se mostrava, que é o contrário do que acontece com certos jogadores, que se vão escondendo à medida que se complica o jogo.

Eu cresci a ver jogar a geração dele. A minha geração é apelidada de Geração de Ouro e eu digo isto muitas vezes: as gerações não são comparáveis porque cada tempo é um tempo e cada jogador é um jogador, mas acho que a geração do Chalana foi a melhor do futebol português. Tinha várias soluções para várias posições. O que perde em relação à minha é no mediatismo, no sair para o estrangeiro, no jogar em grandes clubes europeus... E, mesmo assim, o Chalana conseguiu quebrar de forma especial essa barreira, porque sair de Portugal no tempo dele era uma coisa muitíssimo rara. Tão rara e difícil como um basquetebolista português ir para a NBA.

Se fosse hoje, a única coisa de que podemos ter a certeza é que o Chalana seria uma estrela mundial. No futebol de hoje, lutaria pela Bola de Ouro. Não tenho qualquer dúvida a esse respeito. O problema é que só o teríamos connosco no Benfica durante 6 meses.

Ele era, de facto, isto. Um génio humilde e altruísta. E as pessoas, na verdade, saíam do estádio contentes. Ele não sabe a dimensão que tem. É tão humilde que não sabe quem foi, nem o que representa. Posso dizer isto não só como adepto, mas pela convivência com ele. Para além de ter sido o meu último treinador, foi adjunto quando eu já era diretor, trabalhámos lado a lado e eu garanto que ele não sabe quem é nem o que representa para as pessoas.

Era um jogador que se divertia a jogar, que jogava muito para ver o público contente, mas também com um enorme sentido de equipa. Já ouvi várias vezes os colegas dizerem: 'Sempre que estávamos em dificuldades, o primeiro a pedir a bola era ele'. O Chalana era um jogador que, mesmo num dia de menor inspiração, podia perder cinco bolas, mas, à sexta, levantava o estádio e essa valia por todas [...] a seguir a Eusébio, Chalana. Mas, atenção: o fenómeno dos ídolos é geracional e motiva, por vezes, juízos injustos.

Uma coisa gira de dizer sobre ele, e que demonstra toda a sua genialidade, é o facto de a grande maioria dos adeptos pensar que ele era esquerdino. Mas não era. Apenas jogava do lado esquerdo. E as pessoas diziam: 'O Chalana é maluco, vai marcar o penálti com o pé direito!' A questão é que o direito era o pé dele. Há poucos jogadores com essa capacidade de jogar com os dois pés e de enganar, fruto da posição habitual em campo. Um desses poucos era o Maldini."

TONI: "Um jogador que atuaria num Real Madrid ou Barcelona"

"Há jogadores que ninguém pode ensinar. Ninguém ensinou o Messi, ninguém ensinou o Maradona, ninguém ensinou o Chalana. O Chalana era um talento puro, que trazia magia ao jogo e fantasia. Perante um jogador como ele, o treinador apenas precisa de deixar que o jogador se solte.

O Chalana, só em termos posicionais, já fazia aquele que era o seu papel: desequilibrar a partir do segundo terço do campo. Quando estávamos debaixo de pressão, ele era crucial. Dos pés dele, dos seus dribles, da visão periférica que tinha do jogo, saía sempre algo de bom para a equipa. Para além disso, era um jogador com uma cultura tática de excelência, que fazia, por exemplo, variar com muita facilidade o centro do jogo, consoante a pressão do adversário.

Só foi pena as lesões que veio a ter e que não o deixaram chegar mais longe a nível internacional. O Chalana, a existir depois da lei Bosman, seria um jogador de expressão mundial e atuaria certamente num Real Madrid, num Barcelona, num Manchester United ou num Bayern Munique. Não é difícil reconhecer isso.

Portugal alcançou um terceiro lugar no Europeu de 1984 e quem foi a sua grande figura? Hoje, o Chalana movimentaria milhões. Digo o mesmo do Eusébio. Visto ao contrário, se o Ronaldo tivesse jogado no tempo do Chalana ou do Eusébio, e fizesse carreira apenas em Portugal, a sua expressão teria o alcance que tem hoje?"

NENÉ: "Um atleta prodigioso, que encantava e maravilhava o público"

"O Chalana sabia olhar e colocar a bola em quem estava isolado, na cabeça ou nos pés. Tinha a capacidade de pensar mais rápido que os outros. E nós, avançados, beneficiávamos muito com isso. O Chalana não enganava ninguém. Era um jogador que não sabia jogar mal, fruto da genialidade que tinha. Mal veio para o Benfica, muito jovem ainda, começou logo a jogar num escalão acima do da idade dele. Ninguém teve dúvidas de que se tratava de um jogador top. Era um atleta endiabrado, de uma qualidade excecional, soberbo tecnicamente e capaz de rabiar todo e qualquer jogador que lhe aparecesse à frente.

Todos nós, na equipa, adivinhámos desde muito cedo a evolução que ele teria, quer no Benfica, quer na seleção. Sabíamos que ele estava preparado para os patamares mais elevados. Era um atleta prodigioso, que encantava e maravilhava o público, inclusivamente os adeptos de outros clubes. Porque aquilo que ele fazia era acima do que os outros jogadores faziam. Foram nove épocas fantásticas ao lado do Chalana! Sinto‑me eternamente grato por ter jogado com ele!

O Chalana tinha laços muito fortes com o Benfica. Quando se vem para o clube muito jovem, como foram o meu caso e o dele, é inevitável estabelecer esses laços fortes. Eu tive hipótese de ir para o Real Madrid e não fui porque disse: 'O meu clube é o Benfica!' No caso do Chalana, que era na altura badalado em toda a Europa, o Benfica aproveitou para fazer dinheiro com ele. É preciso lembrar que o fecho do terceiro anel só foi possível graças à venda do Chalana!

No Europeu, toda a gente sabia que Portugal tinha um superjogador, que era o Chalana. Os treinadores das equipas adversárias davam instruções para o marcarem, mas, mesmo assim, ele conseguia sempre passar, mercê das suas qualidades, das suas fintas imparáveis, da sua inteligência. Ele conseguia sempre levar a bola até onde queria. Depois do campeonato da Europa, passou a ser o Super -Chalana. Foi por isso que saiu. Foi por isso que o Benfica o vendeu. O Chalana foi um jogador único!"

ÁLVARO MAGALHÃES: "O grupo dele é o dos Maradonas, dos Messis, dos Ronaldos"

"Se não lhe tivessem aparecido as lesões, certamente que teria tido outra sorte. Mas a parte psicológica também afeta muito um jogador. Lembro‑me que, no tempo do Eriksson, por acaso, quase não tivemos lesões. E o Chalana nem era um jogador atreito a elas, levava era porrada. Eu, nos treinos, como treinador, costumo muitas vezes dar o exemplo dele e do Costeado. Quando o Porto vinha à Luz, por exemplo, o Chalana sentava o Costeado, parecia um peixinho a ir direito à piscina. Depois, para além da magia que tinha como jogador, o Chalana era um bom companheiro. E uma pessoa humilde. E a verdade é que um grande campeão se vê na humildade.

Eu tive o privilégio de vir da Académica preparado pelo grande capitão Mário Wilson e chegar ao Benfica e encontrar grandes jogadores, como o Chalana, o Humberto Coelho, o Carlos Manuel, o Shéu, o Alves, o Pietra, o Bastos Lopes, o Laranjeira.

Eu tinha velocidade, querer, garra e, com os meus movimentos, abria espaços para a genialidade do Chalana se manifestar, para ele fazer coisas maravilhosas. A competência e o sucesso da ala esquerda que formámos deveu‑se essencialmente às características de cada um e a uma excelente conjugação. Éramos muito diferentes, mas combinávamos bem!

Às vezes, ele só assobiava, outras fazia‑me sinal com a mão. Mesmo sem olhar, ele já me sentia próximo dele, já sentia os meus pitons. Eu dava‑lhe também um assobio e metia‑lhe a bola com facilidade [...] Ajudámo‑nos muito um ao outro em campo. Ele era único e fazia ‑me jogar. O passe dele era tão certinho que, depois, não custava nada dar seguimento. E eu fazia o meu trabalho, que era pegar na bola e entregar, como se costuma dizer, a quem sabe. O futebol, assim, é simples!

O grupo dele é o dos Maradonas, dos Messis, dos Ronaldos, dos Zidanes, dos Platinis, dos Eusébios, dos Pelés... Ou seja, o grupo onde só entram esses, outros como esses e mais nenhuns. Para mim, foi uma alegria o regresso dele e só acho que foi uma estupidez aquele dia da final do Prater em que o Eriksson nos pôs na bancada."

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