Cerveja dos pequeninos é o novo pecado nacional

É um segredo de uma minoria ainda, mas as novas cervejas feitas em pequenas fábricas e ao gosto de jovens cervejeiros, com sabores inesperados, estão a conquistar o país e aqueles que se recusam a beber apenas as louras tradicionais. A surpresa é grande
Publicado a
Atualizado a

Chamar Maldita a uma cerveja artesanal pode parecer um golpe de marketing mas não foi por essa razão que Gonçalo Faustino, 32 anos, deu o nome à bebida que começou a fazer em casa dos pais enquanto cursava Química na Universidade de Aveiro e que hoje é uma das principais marcas em Portugal. A justificação para o nome é simples e deve-se à reclamação da namorada que de o ver tão ocupado na produção de cerveja lhe disse uma vez "lá vais tu para essa maldita". Gonçalo achou piada e ficou batizada como Maldita até hoje.

Tal como a maioria dos cervejeiros artesanais, tudo começou numa garagem em 2007, como acontecera décadas antes com os computadores inventados por Bill Gates ou Steve Jobs, e até hoje a Maldita continua a tomar-lhe o tempo todo da sua vida, após ter tirado o mestrado. A startup acabou por sair da garagem, deixando de ser para beber com os amigos e com pequena comercialização, tornando-se uma marca que está um pouco por todo o país e vende cerca de 20 mil litros por mês.

Continua a não lhe dar muito tempo livre, pois só são três empregados, sendo ele o responsável pela fabricação do produto, um funcionário que se ocupa do engarrafamento e um comercial. Uma média de "operários" que é a normal na maioria das oito dezenas de cervejeiras artesanais que existem de norte a sul e que enfrentam a competição da dupla das grandes marcas, a Sagres e a Super Bock, responsáveis por satisfazer a sede da imensa maioria dos consumidores de cerveja em território nacional.

Para se manterem no mercado, os cervejeiros artesanais têm um único objetivo: fazer uma bebida com uma personalidade própria e dá-la a conhecer aos portugueses. Nenhum deles se refere às gigantes da cerveja nacional, dando a entender que são campeonatos diferentes. Não é bem assim, afinal cada uma das multinacionais - a Sagres é dominada pela Heineken e a Super Bock pela Carlsberg - já viu perigo na cerveja artesanal e criaram produtos que competem com os pequenos produtores.

Tal como Gonçalo, todos os principais cervejeiros desta segunda liga do campeonato da loura e da preta estão a afirmar-se de dois modos: aumentam instalações e reorganizam as vendas. Da fermentadora inicial com capacidade para 20 litros, a Maldita passou para a dos 250. Há três anos só eram capazes de engarrafar 60 garrafas por hora e hoje já atingem uma média de 800, um salto tecnológico que exige investimento e que se realiza em função dos lucros obtidos. Da garagem, a Maldita passou para um armazém em Cacia, onde tem todo o modo de produção. Um armazém para o malte e outros produtos necessários para a confeção na fase 1, a da moagem; as fases 2 e 3, a da grande panela onde é feita a brassagem e a fervura; as cubas de fermentação da fase 4 e a fase 5, a do engarrafamento. Depois, conforme o estilo, ficam três ou mais semanas em câmara frigorífica, após o que são rotuladas, encaixotadas e seguem para o mercado.

O que parece simples não era assim tanto há três anos, quando o equipamento mais parecia o de uma produção caseira para o próprio e os amigos provarem. Ainda existe na Maldita a panela para fazer 20 litros de cada vez, as serpentinas para fermentar, a pequena máquina que despejava a cerveja para dentro de uma única garrafa e a capsuladora. Máquinas que já fazem parte de um museu mas eram o modo de produção para todos os novos cervejeiros ainda há meia dúzia de anos, exibindo um avanço tecnológico gigantesco num tempo em se ouvem relatos de produtores que acreditam no segmento e chegam a investir três milhões de euros à cabeça. Ou seja, longe começam a estar os tempos em que o escritor Afonso Cruz contava que fazia cerveja em casa - e até deu título a um livro, Jesus Cristo bebia cerveja - e deixou toda a gente espantada.

A moda da cerveja artesanal parece ter vindo para ficar e prova disso foi a recente quinta edição do Art Beer Festival de Caminha, por onde passaram mais de 30 mil apreciadores e curiosos nas novidades. Um evento que se repete em outros locais, sendo a do Porto a de maior dimensão, e que levam pessoas de todo o país a deslocar-se aos festivais para provarem a grande variedade de oferta. Diga-se que cada cervejeiro tem uma média de cinco marcas regulares e uma dezena de sazonais, somando a oferta dos 27 fabricantes presentes em Caminha em 500 cervejas diferentes. Nada de surpreendente, pois até na capital da Coreia do Norte, Pyongyang, existem 28 cervejeiros artesanais a concorrer com a empresa estatal!

O "arquiteto" da cerveja artesanal

Apesar de existirem, pelo menos, oito dezenas de produtores em Portugal a concorrência é pacífica e ainda se está no estágio de se darem a conhecer. O que não evita que especialistas de outras partes do mundo visitem os eventos nacionais para mostrar o que fazem e tentem participar do assalto ao domínio quase total das grandes cervejeiras. O caso principal é o de Mikkel Borg Bjergsø, que veio pela terceira vez ao festival. O produtor é alto mas franzino e em nada faz o tipo de consumidor de cerveja, por norma com referência na barriga à ingestão do produto. Tem-se tornado a presença que mais importância confere a esta iniciativa, pois o sueco, apelidado de o "arquiteto", é o que mais destaque tem entre todos os cervejeiros artesanais do mundo, confecionando as suas receitas na Europa, Estados Unidos e cada vez mais na Ásia. O "arquiteto" chegou a Caminha para ficar uma semana com 40 colaboradores, especialmente da área do marketing da empresa, a Mikkeller, o que mostra a importância do evento e a curiosidade do sueco neste mercado ínfimo.

Mikkel tem a sua própria receita de sucesso, que passa por não ter nenhuma fábrica mas contratar em cada país um dos melhores produtores da cerveja artesanal para produzir a que desenhou propositadamente para servir num bar de que é sócio. De marca em marca, de bar em bar, de país em país, de continente em continente, tornou-se um modelo inspirador para todos os que estão neste mercado. Está nos EUA, país onde 25% da cerveja que lá se bebe é artesanal; na Bélgica, a nação berço desta alternativa e que terá a maior coleção de variedades; nos países nórdicos, onde o crescimento é enorme. Espreita o gigante asiático onde a curiosidade é proporcional aos milhões de consumidores. O que faz é logo replicado à escala possível e os seus truques também, impondo-se assim a premissa de que ser uma cerveja mais cara do que as das grandes marcas não importa porque o consumidor quer algo diferente. Com sabores de época e travos menos tradicionais, o que o leva a fazer uma estranha stout com cacau e caramelo ou sabores impensáveis para quem julgava que na sua vida só iria beber a loura habitual. Cervejas que podem ser consumidas à temperatura natural ou para acompanhar refeições em vários tempos: uma para as entradas, outra para a carne ou peixe, outra para certas sobremesas e uma final como digestivo.

De Valença a Nova Iorque

O responsável do Art Beer Festival está satisfeito por ter Mikkel por ali e não fica incomodado quando o ouve dizer que a maioria dos festivais de cerveja são chatos porque o ouve confessar, sem rodeios, que "este é diferente". Isso deve-se também, explica Costa, ao facto de a cerveja artesanal ter atravessado os tempos da crise com um grande crescimento: "A oferta é de um produto inovador e diferenciado." Aquele que faz uma família que mora em Valença visitar o festival pela quinta vez para voltar a experimentar novas cervejas, como acontece com Flávia e António, acompanhados de filho e sogra, que testam uma cerveja preta sem reclamar do custo de 3,5 euros.

O preço da cerveja artesanal, superior ao das cervejas correntes, não trava o alastrar desta "moda". Mikkel já o afirmara e todos os cervejeiros nacionais concordam que o consumidor está na fase de experimentar e não se importa de beber menos, pois estas cervejas dão outro grau de satisfação. O mesmo acontece com o espanhol Marcus Diaz, 45 anos, que vive em Nova Iorque, e ao visitar Portugal não deixou de experimentar uma bebida que é rainha no país onde vive: "Vim de propósito porque estou habituado a beber este tipo de cerveja onde vivo. Como existem muitas lá, quis ver as diferenças."

Andou de produtor em produtor a escolher a que mais lhe poderia agradar até parar na Pyynikin, onde o mexicano Mario Beltrán, 33 anos, protagoniza o seu papel de embaixador da marca finlandesa, país onde esta produção duplicou em quatro anos. A ida a Caminha deve-se a Portugal ser "considerado um país cada vez mais interessante", tanto que já se exporta cerveja da Finlândia para cá: "Não é importante a quantidade que vendemos em Portugal, queremos é estar presentes neste momento de implementação de marcas." Aquela que representa produz meio milhão de litros por ano e está no trio das que mais vendem naquele país.

Do outro lado da praça está outro estrangeiro, Marcos Praça, 42 anos, que faz parte da portuguesíssima Mean Sardine, da região da Ericeira. Veio do Brasil há quatro anos, um dos países que é considerado um case study no meio tal foi a expansão nos últimos anos e é o responsável pelo marketing e um dos sócios da firma. Em 2014 veio a Portugal representar sete marcas de cerveja brasileira, com 35 variedades, e acabou por regressar: "Os cervejeiros portugueses tinham curiosidade em saber o que se fazia no Brasil, como era o caso da empresa onde trabalhava, a Cevada Pura." Encontrou uma área onde ainda existia pouco profissionalismo, mas a situação mudou: "Estamos na fase de apurar." Não é por acaso que a Mean Sardine ganhou o reconhecimento internacional e foi convidada para estar num grande evento em Bruxelas este mês. Quanto às variedades da marca, há muitas cervejas sazonais, como as feitas com ginjinha, ameixa ou maracujá. A reestruturação da empresa permite acompanhar a procura e a exportação para Espanha é um facto, mesmo que o número de pessoas que a produzem seja reduzido: quatro.

Curso interrompido

Outra das marcas que se destacam em Portugal é a Luzia, da Anadia, terra de grande implantação de vinho. Patrícia Fernandes, 26 anos, é uma de dois sócios e operários da cerveja artesanal que, com Rubem, produziu em 2016 cerca de 4 mil litros. O seu percurso é padrão nestas andanças: descobre a bebida no convívio com amigos que produzem a própria cerveja e fica apaixonada. "Bebera cervejas belgas e alemãs e num Erasmus em Itália descobri outras. Perguntei-me, porque não fazer a minha própria cerveja?" Daí a passar a cervejeira foi um passo, até porque estudava Enologia e havia muitas semelhanças entre fermentações: "Tinha disciplinas sobre cerveja no curso e, apesar de em Portugal não ser uma carreira nobre então, decidi avançar. Os amigos gostavam e queriam comprar. Vendíamos no café da aldeia, numa hamburgueria e numa tasca até que um dia o presidente da junta de freguesia convidou-nos a participar numa mostra de produtos da região." Estava feita a transição. Abandonou o curso e criou a Luzia, que deve o seu nome a ter a fábrica na Rua de Santa Luzia: "Retocámos a imagem da Santa com um ar mais atrevido e sensual, tipo pin--up, e em 2015 comercializámos o primeiro lote. Um ano depois estávamos no mercado." Daí a encontrar-se hoje a Luzia nas prateleiras de várias lojas ou no El Corte Inglés, a rede comercial que mais exposição tem dado à cerveja artesanal, foi um curto passo. Patrícia vive disto e está integrada numa tendência mundial cada vez mais forte, arriscando em novas experiências: "A cerveja de trigo é a mais consensual mas decidimos fazer com frutas e até com uva da Bairrada, que já foi reconhecida em Itália."

Começar uma cerveja artesanal é atraente para muitos jovens e Miguel Cáceres, 23 anos, é um deles. Esteve no Norte de França, próximo da Bélgica, onde experimentou muitas variedades. Regressa a Portugal e começa a produzir a sua própria cerveja há dois anos. Depois, ganhou experiência junto de alguns cervejeiros porque, como diz, "fazer 50 litros é diferente de 500". Como a base é no Montijo chamou-lhe Aldeana, a antiga designação da localidade [Aldeia Galega], e em março avançou para a comercialização. A primeira experiência chegou ao mercado a 29 de abril e desde aí já produziu 5 mil litros. O primeiro objetivo foi seduzir os habitantes mais próximos: "É difícil porque o conceito da cerveja artesanal é desconhecido por aqui." Agora, está a tentar chegar mais longe: Setúbal e Lisboa. Depois, o resto do país. O problema de se dar a conhecer foi ultrapassado através de campanhas na internet, já que considera que a promoção tradicional está obsoleta. O que fez? "Filmámos duas senhoras a falar com o sotaque da região, que explicavam o que era a Aldeana no Facebook. Depois, convidávamos as pessoas a comentar. Num instante tivemos 20 mil visualizações", conta. Por enquanto tem duas cervejas à disposição, uma mais leve, do estilo Belgian Blonde Ale com 6º e mais típica para o verão; uma segunda, morena e robusta com 8º de álcool, que é cortado com o sabor de malte de caramelo. Após este primeiro passo, a intenção é aumentar a oferta: "O mais difícil foi começar!"

Rivalidades

Também existem os que não são cervejeiros mas fazem parte deste mundo. É o caso de João Gonçalves, que decidiu criar um site na internet para reunir todos os produtores. É editor da Cerveja Artesanal Portuguesa, página de onde se pode conhecer este novo mundo: "Descobri a cerveja artesanal em 2011 enquanto estive em Estocolmo. Quando regressei, quis saber o que se fazia por cá. Descobri que já havia algumas boas cervejas e três ou quatro projetos a andar bem." De lá para cá a evolução foi enorme, diz: "A maioria são recentes, com menos de dois anos de existência." Considera que em Portugal e na Europa ainda não se vive a "obsessão que existe nos EUA", mas para lá caminha através de "projetos familiares de grande qualidade". Não hesita em considerar que "a nossa cerveja está acima da média" e, tal como em Itália, Espanha, Reino Unido e Estónia, "está em grande crescimento". No site mostra essa realidade com a listagem de mais de 70 cervejeiros "que vendem bem e de qualidade".

Quando se pergunta a João Gonçalves qual é quota de mercado da cerveja artesanal, refere que poderá chegar a 5% da produção nacional. É um número um pouco elevado, que vai descendo até aos 0,8% ouvido noutras fontes; que anda pelo 1% se escutados alguns produtores, e que se fixa em 2% segundo os mais profissionais do setor. Este é, no entanto, um tema onde ninguém quer criar polémicas indesejadas. Percebe-se que nem a Sagres nem a Super Bock podem ser consideradas rivais porque a disparidade é muita, mas nota-se o desagrado perante a atitude das gigantes em tentar impedir que os restaurantes tenham uma boa oferta de cervejas artesanais ou pela concorrência direta às pequenas produções por via da criação de alegadas cervejas tradicionais, respetivamente, a Bohemia ou a 1927. Cervejas que, dizem os pequenos produtores, pouco têm de artesanal, pois seguem o procedimento de conterem ingredientes menos naturais, ter gás CO2 para fazer borbulhas, e usar uma imagem que imita o artesanal sem o ser.

O pecado da distribuição

A exigência do mercado faz alterar as estratégias de comercialização que diferenciava os gigantes dos pequenos cervejeiros. Um dos melhores exemplos é o da Práxis de Coimbra ter acordado com a Sagres em voltar a produzir a famosa cerveja Topázio de Coimbra, arredada do mercado há muitos anos. Esta é uma colaboração que os cervejeiros artesanais olham com atenção para se perceberem estratégias a seguir ou a evitar.

Outra das novidades entre os cervejeiros artesanais é o aparecimento de parcerias com empresas maiores a nível da distribuição. É o caso de uma das marcas mais conceituadas da produção artesanal, a Letra, fabricada numa moderna unidade em Vila Verde. Nasceu pequena mas está a produzir cerca de 15 mil litros mensais, tendo abandonado a expressão mínima habitual de 3/4 pessoas a trabalhar para empregar uma dezena. Por isso tem recebido algum apoio da autarquia, que vê na Letra um polo de desenvolvimento local, até porque realiza um projeto-piloto de produção de lúpulo em terreno próximo às instalações. Não será por acaso o apoio, é que Vila Verde já foi o grande produtor de lúpulo em Portugal mas há três décadas perdeu a viabilidade económica para a Alemanha e extinguiu-se na região.

Francisco Pereira é um dos fundadores da Letra e evita adotar o lema da sua cerveja, a [cerveja de] pressão relaxa, ou não conseguiria manter o ritmo de crescimento que faz que esteja entre as três principais artesanais. Para acompanhar a constante renovação do equipamento para fermentação e brassagem, a Letra fez recentemente um contrato de distribuição com a Sogrape, outra novidade no setor que é observada com muita atenção pelos restantes.

A cooperação entre um dos grandes da produção vinícola portuguesa é um passo inovador na evolução desta unidade artesanal, afinal Francisco vem da Universidade do Minho, onde cursou engenharia química, sendo que esta paixão o obrigou a picar pedra nos primórdios desta atividade em Portugal: "Desenvolvi receitas durante dois anos que testava com amigos até que em 2012 achei que estávamos aptos para arrancar, o que aconteceu no ano seguinte."O investimento inicial rondou os 350 mil euros, quantia entre as maiores no setor à época, e o lucro foi pouco: "Ganhámos zero, era tudo para reinvestir", situação que se mantém. A Letra tem a fábrica à vista dos clientes que frequentam o seu bar/restaurante, onde o consumidor tem acesso ao modo de produção. O estabelecimento serve cervejas várias e tem cozinha para confecionar pratos que exponenciam o sabor da bebida, existindo um segundo no Porto, mais frequentado, servindo de montra. O passo seguinte é a expansão no mercado nacional e a internacionalização: "Queremos ser uma marca minhota e vender cerveja em França, onde já temos um distribuidor, bem como na Finlândia e na Bélgica." Quanto ao facto de a cerveja artesanal fazer parte de uma moda, Francisco garante que se o é veio para ficar: "Daqui a uns anos a cerveja artesanal será como o vinho. Esforçamo-nos para que os restaurantes passem a ter uma carta de cervejas tal como a dos vinhos, com as qualidades que se produzem e conselhos para o consumidor."

Fabricar e dar a provar

Uma carta de cervejas tal como existe uma para vinhos é também o desejo de Susana Cascais que produz com o marido a cerveja Dois Corvos num dos velhos - e recuperados - armazéns em Marvila, na zona oriental de Lisboa. É ali que tem um bar e Taproom, de onde também se pode ver a fábrica: "O sonho dos cervejeiros artesanais é entrar num restaurante e ter à sua disposição uma carta de cervejas, como acontece nos EUA, na Alemanha, no Reino Unido ou na Bélgica." Considera que esta indústria em Portugal está no estágio em que o vinho se encontrava há 20 anos, mas está tudo a mudar, como vê na reação dos clientes que vão repetidamente à Dois Corvos e levam gente que nunca provou. Susana e Scott Steffens, ambos com 43 anos, viviam em Seattle. Eram apreciadores desta cerveja, que Scott também produzia desde os anos 90 em casa. Em 2012, decidem vir para Portugal sem qualquer intenção de se dedicarem ao ramo: "Chegámos no pior mês da crise, em dezembro de 2012." Como todos os cervejeiros artesanais, garante, não há por enquanto crise nesta vida porque é um mercado por explorar e com um potencial muito longe de ser atingido: "Está tudo por fazer!" Ela trabalhava na área do marketing e publicidade e ele era engenheiro de software: "Não estava nos nossos planos fazer cerveja, só decidimos isso depois por haver uma grande lacuna no país." Em 2013 começam a procurar um espaço e acabam por escolher uma zona em recuperação e que ainda não estava na moda como agora: "Era o melhor local para instalar a fábrica e com a dimensão necessária." No ano seguinte começam a montar o negócio, que arranca em 2015: "Em julho de 2016 temos a primeira produção." Comemoram o segundo aniversário com a aquisição de mais equipamento para responder à procura: "Fazemos a cerveja que gostamos de beber e parece que não somos os únicos a apreciar." Têm constantemente sete cervejas e igual número de sazonais ao longo do ano, envelhecidas em barricas de vinho do Porto, moscatel ou vinho branco.

O mágico da curva do desejo

O cervejeiro Pedro Sousa tem 36 anos mas é um dos primeiros mestres da cerveja artesanal portuguesa, tendo começado no Porto com a Sovina. Hoje, tem várias marcas próprias, a que dá sempre um nome, além das iniciais do seu nome sob a marca a Post-scriptum e de assinar em baixo By Pedro Sousa, uma forma de avisar os amantes sobre a autoria e para evitar o processo de legalização de cada produto devido à legislação ainda desfasada. Depois de várias experiências com outros cervejeiros, decide montar a sua fábrica em Alvarelhos, Trofa, onde emprega mais três pessoas, desenha as cervejas e faz sob encomenda muita da produção de outras marcas que não têm instalações suficientes ou o conhecimento - 16 diferentes. Sendo muito conhecido no meio, rapidamente se voltou a posicionar no mercado: "Já tinha cervejas vendidas e ainda não as fizera!" É da opinião que o consumidor não é estático e que a sua missão também é a de prever o percurso do cliente e "esperá-lo na curva do desejo". Não é difícil perceber que conhece este pequeno mundo dos cervejeiros artesanais quando se pega numa garrafa e se vê o rótulo: uma Imperial Stout com o cosmonauta Yuri Gagarin ou uma doppelbock com uma mulher sedutora a fumar, com uma cabeça de carneiro. Duas imagens provocantes que lhe dificultaram a exportação da primeira para a Rússia, porque a cabeça do cosmonauta era um crânio, enquanto em certos países da Europa a mulher a fumar foi censurada. Por isso o seu produto mais vendido acaba por ter uma ilustração discreta, uma frase dos monges ora et labora (reza e trabalha), inspirado nos monges fabricantes de cerveja de São Bento. Cada cerveja que desenha demora um mês a ficar pronta, sendo a exceção as que envelhecem num barril de cognac ou de whisky Bourbon. Estas, um exemplo do que o cliente mais experiente já procura e que também é fruto do que tem observado em países como Espanha, Brasil ou República Checa: "Aprende-se muito com os outros, principalmente as novas técnicas de produção e os novos sabores."

Apesar de ter uma dezena de marcas constantes, não deixa de olhar para o mercado: "Agora vou fazer uma nova cerveja que todos me estão a pedir. Há muita malta estranha neste setor, com gostos que vão mudando conforme experimentam as novidades cá ou lá fora." Portanto, confessa, "é preciso pensar na drinkability de cada cerveja", ou seja, tocar a música que o cliente aprecia. Talvez por isso tenha num canto da fábrica uma guitarra elétrica...

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt