Cerca de 40% das intoxicações são "cozinhadas" em casa

Morrem por ano mais de 420 mil pessoas em todo o mundo devido ao consumo de alimentos contaminados. Na Europa, ainda que este continente tenha os números mais baixos, são afetadas 23 milhões de pessoas, das quais acabam por morrer cerca de 5 mil. O combate às intoxicações começa na nossa própria cozinha.
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Segurança alimentar. Este é um tema a que poucos dão importância e que muitos pensam ser um problema típico dos países em desenvolvimento. Ainda que os números mundiais de doenças provocadas por contaminações alimentares - vulgo intoxicações -, com os casos reportados a ascenderem os 600 milhões anualmente, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), com mortes associadas de 420 mil pessoas, sobretudo crianças com menos de cinco anos, tenham particular incidência na África e na América do Sul, a Europa não está completamente livre deste flagelo.

Até pode ser o continente com os números mais baixos, mas, mesmo assim, a situação não é animadora: cerca de 23 milhões de europeus sofrem de doenças relacionadas com a ingestão de alimentos contaminados e as vítimas mortais, por ano, rondam as cinco mil.

"São mais de 200 as doenças despoletadas pela ingestão de alimentos ou água contaminados, por diversos tipos de bactérias, vírus, parasitas, toxinas e outras substâncias nocivas. A boa notícia é que podem ser prevenidas e o consumidor tem aqui o papel principal. Através de informação e conhecimento é possível reduzir muitos destes números", explica Susete Estrela, Engenheira Alimentar e Health Coach, autora do livro Sabe o que anda a comer?. Com uma segunda obra na calha, e a ministrar cursos online para esclarecer e educar o consumidor nesta temática, esta especialista, que já passou por experiência profissionais em diversas partes do mundo, a última no Dubai, defende que, em relação à alimentação, "a única coisa que nos faz mal é a falta de conhecimento".

Entre estas doenças, as diarreicas são as mais frequentes, e atingem, segundo os dados compilados pela OMS, cerca de 500 milhões de pessoas no mundo, com 230 mil mortes associadas todos os anos. Em 2019, dados pré-pandemia, as doenças diarreicas foram a oitava causa de morte e a sexta se tivermos em conta apenas os países de rendimentos mais baixos. Estas doenças envolvem quase 100 mil milhões de euros em perdas de produtividade e em despesas médicas. Um montante que não pode, nem deve ser ignorado. Estas são provocadas pelo consumo de carne crua ou mal cozinhada, ovos, produtos frescos e produtos lácteos contaminados, sendo que as mais comuns são provocadas pela bactéria Campylobacter, com cerca de cinco milhões de casos anualmente só no Velho Continente, seguida da Salmonella e da E.colli. África é, de longe, a região mais penalizada, com 91 milhões de casos de doenças por contaminação alimentar, dos quais 70% são diarreicas.

Susete Estrela refere que o tipo de doenças e a gravidade das mesmas mudaram ao longo dos tempos, mas ainda assim representam um problema de saúde pública comum a muito países. "A Agenda 2030 para o desenvolvimento Sustentável, adotada em 2015 pelas Nações Unidas, definiu 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentáveis (ODS), sendo que um deles, o de Produção de Consumo Sustentável, defende a elaboração de estratégias integradas para incentivar e promover a adoção de boas práticas em matéria de segurança alimentar. A segurança alimentar é o primeiro pilar da alimentação saudável, pois o que nos interessa comer uma salada nutritiva se ela estiver contaminada?", questiona, retoricamente, esta especialista. Adianta ainda que é fundamental que o consumidor esteja alerta e informado sobre a sua responsabilidade no que diz respeito à segurança dos alimentos que ingere, já que há estudos que mostram que "40% dos casos reportados de intoxicação ou infeção alimentar, são cozinhados em casa".

A engenheira alimentar explica ainda que "a falta de consciência para a correlação entre más práticas de confeção e as doenças alimentares, tem sido um grande impedimento para baixar a percentagem de incidentes". Como apenas uma pequena parte das pessoas que adoecem pela ingestão de alimentos não seguros procuram cuidados médicos - em geral, as dores de estômago, diarreias e outros sintomas mais ligeiros, acabam por passar ao fim de alguns dias -, todos estes números estão subnotificados.

As contaminações dos alimentos podem ser biológicas, químicas ou físicas, sendo que é na primeira categoria que se inserem os microrganismos patogénicos, como as bactérias, os vírus e os parasitas. Na contaminação química temos as toxinas naturais (por exemplo, os cogumelos venenosos), os resíduos de pesticidas, de antibióticos, aditivos alimentares e os metais pesados, como chumbo, o cálcio, o mercúrio, entre outros. Já a contaminação física dos alimentos pode resultar da ingestão de corpos estranhos ao alimento, como fragmentos de vidro, de plástico, de metal, de madeira, entre outros. Todos estes fatores contribuem, de alguma forma, para reduzir a segurança alimentar, e quanto maior a consciência do consumidor em relação a estes perigos escondidos menor o seu impacto na saúde humana. Susete Estrela recorda que é um mito acreditar que conseguimos saber se um alimento está contaminado pelo sabor, pelo cheiro ou pela cor do mesmo. "Existem microrganismos bons, como os que transformam o leite em iogurte, microrganismos maus, que são responsáveis pelo azedar ou pelo apodrecer, que geralmente não causas doenças porque se identificam logo. Mas os microrganismos patogénicos, como as bactérias, são ainda mais perigosos porque não se denunciam", afirma.

A grande arma no combate a estes perigos escondidos, que, como vimos, não afetam apenas os países mais pobres, é a educação do consumidor, alertando para a sua responsabilidade durante todo o processo. Paula Teixeira, professora e investigadora da Universidade Católica Portuguesa, especialista em microbiologia alimentar e segurança alimentar, dedica-se a estudar temas que envolvem patogénicos alimentares, fazendo parte de um grupo de investigadores nacionais constituído por sociólogos, antropólogos e microbiólogos, ligados ao projeto europeu SafeConsume. Este projeto tem como objetivo potenciar ferramentas e iniciativas que possam, através de estratégias de comunicação e educação, reduzir o impacto das doenças alimentares na sociedade. Foram feitos já alguns estudos com conclusões interessantes, como foi o caso da observação feita em seis países - Portugal, França, Hungria, Noruega, Roménia e Reino Unido - sobre os hábitos de preparação da carne de frango. As carnes de aves são um dos principais focos da Campylobacter, que é causa bacteriana mais comum da gastroenterite humana. "Este estudo revela a necessidade de sensibilizar as pessoas, em todos os países europeus, para o facto de a carne de frango crua poder conter agentes patogénicos e de que forma poderá ser evitada a sua propagação pela cozinha", explica Paula Teixeira.

Sabendo que utilizar os mesmos utensílios, sem os lavar, para preparar frango e salada, pode causar toxinfeções alimentares graves, foram acompanhadas 87 famílias - em média 15 agregados familiares por cada um dos países participantes -, de várias faixas etárias, na sua rotina de preparação destes alimentos. Uma das conclusões retiradas deste estudo é que há grandes diferenças entre os seis países europeus, tanto na ocorrência de agentes patogénicos como na higiene da cozinha, sendo claro que o local onde se vive tem mais influência do que a idade ou género. Os participantes foram entrevistados e filmados, desde as compras até à limpeza da cozinha, e foram ainda recolhidas amostras para análise microbiológica dos alimentos, dos utensílios e das superfícies utilizadas. Concluiu-se que a ocorrência de agentes patogénicos em frango cru diferiu largamente entre países. Oito em cada dez frangos estavam contaminados em França e Portugal, na Roménia foram seis em cada dez, e no Reino Unido e Hungria foram sete em cada dez. Menos de um em cada dezena de consumidores noruegueses levou frango contaminado para as suas cozinhas.

Relativamente aos dados nacionais, verificou-se através de uma análise microbiológica que, nas 15 cozinhas observadas, existiu contaminação com a bactéria Campylobacter em quatro delas, passando para as tábuas de corte ou para os lava-loiças como resultado das más práticas de manuseamento dos produtos alimentares. Também foi encontrada a bactéria numa bancada e num pano de cozinha. Foi ainda possível verificar, através desta observação, que 67% das famílias portuguesas lavaram o frango antes de o cozinhar, número semelhante ao verificado na Hungria. Já na Roménia, todas as famílias o fizeram. Esta prática não foi observada em França, Inglaterra e Noruega. A relevância deste facto é que a lavagem da carne de frango é um dos principais agentes de contaminação cruzada, pois esta prática transfere os microrganismos patogénicos da carne para os utensílios e depois para os alimentos que comemos crus, como as saladas. Também as práticas para evitar a contaminação da salada variaram de país para país. Por exemplo, em Portugal e na Roménia foi comum utilizar a mesma tábua e faca de corte do frango cru e lavagem da salada, sem lavagem com água e sabão, mas não em outros países.

Para Paula Teixeira, é fundamental comunicar bem estas questões para assim se combaterem velhas crenças relativamente às práticas de manuseamento dos alimentos. A diferença entre Portugal, onde há o hábito de lavar a carne de aves, e o Reino Unido, onde não existe esta prática, pode ser cultural e prender-se com padrões que passaram de pais para filhos ao longo dos tempos, quando havia o hábito de criar a sua própria carne de aves no quintal de casa e ali se procedia ao seu abate. E os hábitos arreigados ao longo dos tempos são os mais difíceis de combater. "As mensagens de segurança alimentar têm agora de ser feitas à medida de cada país, tendo em conta tanto os níveis de contaminação do frango como os hábitos dos consumidores. Por exemplo, os consumidores em Portugal, Roménia e Hungria poderiam beneficiar de mais informação sobre o risco que representa lavar o frango na bancada", explica a investigadora.

Outro hábito dos portugueses que promove riscos para a saúde é o consumo de ovos, sobretudo aqueles a que chamamos de caseiros. A Salmonella está presente em animais para consumo humano pelo que prolifera em ovos, carne, aves e leite, mas também alguns vegetais, contaminados com estrume da adubação, provocando uma doença designada salmonelose, também ela uma doença incluída na lista da diarreicas. É responsável por cerca de 153 milhões de casos de gastroenterites notificadas, e que resultam em 57 mil mortes anuais no mundo. Também ao abrigo do programa SafeConsume, foi realizado um outro estudo sobre este alimento em vários países. Em Portugal foram analisadas várias amostras de ovos de produção das galinhas de quintal, e observou-se que 96% destes ovos estavam muito sujos e que mais de 92% eram armazenados à temperatura ambiente. Em 200 amostras de ovo, 3% continham Salmonella. Quando questionados os consumidores sobre a confiança que têm na qualidade dos ovos apenas 6,8% dos inquiridos dizem ter confiança nos ovos nacionais, ainda que 9,3% confiem no seu fornecedor habitual. Curiosamente, 45% dos inquiridos nacionais utilizam a técnica e colocar o ovo a boiar na água para aferir se este está apto para consumo. Esta prática não passa de um mito, já que não atesta sobre a contaminação do alimento por microrganismos patogénicos, mas apenas sobre a sua frescura. Este é mais um dos vários erros alimentares que os especialistas tentam combater para que a segurança esteja cada vez mais, através da informação fidedigna, ao alcance de todos.

A OMS e o Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge, publicaram um manual, que, de forma resumida e prática aponta as cinco chaves para uma alimentação mais segura. Saiba quais são:

1 Mantenha a limpeza. Lavar bem as mãos, higienizar bancadas e utensílios aquando da manipulação de alimentos.

2 Separe alimentos crus de alimentos cozinhados. Separe alimentos como carne e peixe crus dos outros alimentos, e utilize utensílios diferenciados para o seu manuseamento.

3 Cozinhe bem os alimentos. Alimentos mal cozinhados, como carne mal passada, são uma fonte de risco. As temperaturas devem atingir os 70 graus mesmo no centro do alimento.

4 Mantenha os alimentos a uma temperatura segura. Não deixe alimentos cozinhados à temperatura ambiente mais de duas horas e refrigere rapidamente a uma temperatura abaixo dos 5 graus.

5 Utilize água e matérias-primas seguras. Utilize água potável, e alimentos variados e frescos, ou pasteurizados, e não consuma fora da data de validade.

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