Centenário de Sorolla. Luz e Liberdade

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Celebrado em vida, relativamente esquecido depois da morte, ocorrida em 1923, Joaquín Sorolla é, de qualquer modo, hoje reconhecido como um dos grandes pintores espanhóis do século XX. A sua produção, pletórica, que conta mais de 2000 obras, revelaria, para alguns, uma pretensa "alma espanhola", com o registo da identificação de um país plural, balançado entre a elegância cosmopolita das suas elites e a permanência das tradições folclóricas de uma sociedade ainda rural, absorvida por um olhar romantizado; foi, para outros, um artista que conseguiu superar esse enraizamento e constituir carreira internacional, com apreciável eco em toda a Europa e, sobretudo, na América do Norte, onde foi cobiçado por museus e grandes colecionadores privados.

Foi este multifacetado pintor que o Museu Nacional de Arte Antiga lembrou em 2018-19, em exposição antológica, com uma selecção de trabalhos que davam bem conta de uma diversidade irredutível, onde cabiam as experiências lumínicas e a intensidade solar que o celebrizaram, as atenções mundanas, os jogos de água, a invenção matérica, mas também as paisagens descarnadas da "terra adentro", as memórias exóticas do passado árabe ou o inventário de sabor etnográfico das regiões e das gentes de Espanha, que ensaiou nos painéis monumentais realizados entre 1912 e 1919 para a biblioteca da Hispanic Society de Nova Iorque.

Todas as categorias pictóricas clássicas lhe serviram - a paisagem, o retrato, a pintura de História e a pintura de género -, alguma desta de intenção social ao gosto do filantropismo oitocentista, como o famoso quadro Triste Herança, de 1912, patética evocação de um banho de mar de crianças deficientes, vigiadas pela figura quase ascética de um religioso. Uma obra tão complexa ajudou à incerteza classificatória da história da arte tradicional, que não se entendeu sobre a natureza singular do seu projecto. Marcadas por uma luz intensa aprendida na sua Valência natal, capaz de diluir as formas, às telas de Joaquín Sorolla chamaram-lhes "luministas", embora também tivesse sido longa a discussão sobre o seu carácter "realista" e "naturalista", e sugeridas possíveis contaminações "impressionistas" ou, até, "pós-impressionistas". Também não terá sido alheio, ainda que em momentos breves, a inspirações "simbolistas" de raiz parisiense, com a exploração de ambientes oníricos em composições quase gráficas, sintéticas, como a Paisagem de San Sebastián (1911), de enigmática figura feminina apenas esboçada, encostada a uma árvore perdida num bosque, ou em marinhas de tons violáceos

Em todo o caso, e ao contrário do que se pensou, o artista foi também capaz de rasgos modernizantes, dentro da uma prática académica menorizada pelo triunfo novecentista das vanguardas. De um ponto de vista pouco convencional, em ousado plongée, pintou, em 1911, a Maratona de Nova Iorque, onde estão presentes as expressões da fotografia e do cinema; deixou algumas, poucas, paisagens urbanas de amplos boulevards rasgados pelo automóvel; e foi um interessado cronista social da burguesia do seu tempo e de uma joie de vivre muito Belle Époque, coincidente com a visão que dela tinha a pintura impressionista francesa, embora sem o toque classista acrescentado por Sorolla.

100 anos que agora passam sobre a data da sua morte precoce permitiram uma reavaliação profunda da importância do seu legado artístico, e a essa circunstância de revisão crítica esteve atento o MNAA, que já em 2015-16 tinha exposto com a Colecção Masaveu um núcleo importante de quadros seus. Na verdade, o padrão de reconhecimento de Sorolla deixou de ser medido em função da ideia de uma modernidade disruptiva, que se tornara hegemónica na historiografia ocidental, mas enquadrado analiticamente no gosto de uma época e nas condições de produção, validação e consumo da obra de arte entre os finais do século XIX e inícios do século XX. Para esta redescoberta foi essencial a alteração de velhas tendências museográficas que, após a abertura do Musée d"Orsay, em 1986, passaram a contemplar com outra abertura analítica a pintura dita académica e oficial. Pintor da luz - o que é oportunamente lembrado na exposição evocativa que agora lhe é dedicada no Palacio Real de Madrid, Sorolla, A Través de la Luz - foi acima de tudo um pintor da liberdade, não apenas da liberdade criativa de aflorar todos os géneros, mas da própria liberdade de execução do artista perante a tela, que afronta com gestos largos e pinceladas longas e empastadas, com pouca preparação prévia, traço distintivamente moderno que é ainda hoje uma das razões da consistência formal e histórica da sua obra.


Museu Nacional de Arte Antiga
(O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.)

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