Centenário de Billie Holiday: A tragédia e a glória de uma mulher que teve azar com o tempo

Vítima de racismo e de violência doméstica desde sempre, prostituta adolescente, alcoólica e toxicodependente. Uma história comum para uma negra americana, pobre e criada apenas pela mãe. Felizmente, houve uma diferença:a voz.
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Os estudiosos do jazz, aquela música imprevista e tantas vezes improvável que nos eleva acima de todas as lógicas, mantêm-se acantonados em dois grandes grupos: uns fazem finca-pé na supremacia de Ella Fitzgerald (1917-1996), a mulher que nunca forçou uma nota, que criou e desenvolveu uma naturalidade no canto que só os dotados com o dom conseguem manter como regra sem excepção. Do outro, aparecem as trincheiras que defendem que nunca houve uma cantora popular como Billie Holiday, a mulher cujo centenário assinalamos hoje mesmo e que foi empurrada, de forma pouco suave e nada discreta, para uma morte prematura aos 44 anos (para registo: a 17 de julho de 1959), uma idade em que muitas das vozes do jazz ainda estão a colher temperos para a respectiva identidade musical. Vivendo com uma intensidade vertiginosa, que os crentes no destino se apressam a explicar com a intuição de que uma qualquer cirrose, desdobrada em edema pulmonar e insuficiência cardíaca, viria tolher-lhe os passos. Billie - que nasceu Eleonora, filha de Sarah Julie (Sadie) Fagan e do músico Clarence Holiday, embora o registo indique Frank DeViese como pai - já era uma veterana aos vinte e poucos anos. O que permitiu, segundo alguns dos militantes da sua causa, que ela personificasse a grande mudança no jazz cantado, estilhaçando fronteiras e abordagens até então olhadas como inabaláveis.

A revolução provocada por Louis Armstrong, curiosamente apontado por Billie como um dos seus "padrinhos" musicais, a par da influente decana Bessie Smith, dispôs de uma tradução no feminino - a que Lady Day (a carinhosa forma de tratamento criada e eternizada por outro génio da grande música negra, outro "cometa" cuja influência se prolongou muito além do tempo de vida útil, o saxofonista Lester Young) subscreveu. Sucintamente, prosaicamente, desde os seus primeiros tempos nos clubes de um Harlem em mudança (de bairro suburbano de uma média burguesia branca para "a maior cidade do mundo com população negra", nas décadas de 20 e 30 do século passado), Billie Holiday parecia troçar da métrica para criar os seus próprios compassos, preferia cantar em uníssono com os saxofones, prolongando notas ou deslizando sobre elas, do que acompanhar os parâmetros da lógica que a antecedeu.

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