Cenário para Kafka com 700 máscaras
António Jorge. A peça que a companhia teatral A Escola da Noite estreou quinta-feira, no Teatro da Cerca de São Bernardo, em Coimbra, foi concebida e montada a partir das peças que o actor-encenador tem vindo a fabricar nas suas horas vagas, numa incessante pesquisa de métodos e investigação de materiais, o que tanto lhe pode servir para fazer adereços ou cenários como no processo de composição de personagens
Fabrica estas caras de uma forma quase compulsiva
Em papel pardo ou em plástico industrial, de madeira ou de ráfia, feitas com aço ou com terracota, criadas a partir do arame ou do cartão, lisas ou pintadas, mais próximas da etnografia do entrudo português ou parentes do carnaval veneziano como sugere quem as vê, parecendo mais inspiradas na tradição do teatro japonês ou nos rituais das culturas africanas - há 700 máscaras diferentes no cenário da peça que A Escola da Noite estreou, na quinta-feira (e que estará em cena até 17 de Janeiro), no Teatro da Cerca de S. Bernardo, em Coimbra, com o título 700 Máscaras à Procura de Um Rosto ouUm Artista da Fome.
António Jorge, um dos fundadores da companhia profissional de Coimbra, depois de fazer uma máscara como adereço necessário para a produção de Os Persas (o texto de Ésquilo encenado por Pierre Voltz com A Escola da Noite em 1999), encantou-se com aquela confecção manual que remete exactamente para aquilo que o actor faz em palco desde os tempos da cultura helénica - esse jogo entre o rosto e as máscaras de que, na sua carreira de actor, talvez tenha sido ilustrado de forma mais eloquente nas quatro personagens que interpretava, no ano passado, em Tchékhov e a Arte Menor, colagem das peças O Trágico À Força, O Urso, O Pedido de Casamento, O Canto do Cisne, Os Malefícios do Tabaco e O Jubileu, numa dramaturgia e encenação do director artístico da companhia, António Augusto Barros.
A partir da altura em que pôs as mãos e a imaginação nesse adereço para Os Persas, António Jorge começou a fabricar caras de forma quase compulsiva. E terá encarado essa criação menos como o hobbie de quem acaba por já quase não ter espaço em casa para encaixotar mais máscaras, que foram sendo agrupadas em grandes clãs pela matéria-prima e, depois, noutros mais pequenos, associados de acordo com a forma ou a expressão.
A sua demanda incide sobretudo na perspectiva de experimentar materiais e processos criativos (como explica nos comentários que faz às sete máscaras que se publicam nestas páginas) que lhe podem vir a ser úteis, não só para fazer outro tipo de adereços e cenários, mas até para a composição de personagens, pois "a máscara é um espaço de síntese, poderoso e polissémico".
E, no entanto, o percurso estético da companhia conimbricense não tem uma especial relação com o teatro das máscaras, seja o bailado Topeng do Bali ou as figuras da italiana Commedia dell'Arte, as personagens da clássica tragédia helénica ou a inexpressividade nipónica do Nô, as teses do encenador francês Jacques Copeau ou a prática dos americanos do grupo The Bread and Puppet Theater.
"A máscara, sei -o melhor agora, consegue ser verbo antes do verbo, é matéria concreta e língua universal e, ao contrário da palavra, está condenada a não mentir e a perdurar", escreveu António Jorge no programa-catálogo da peça-exposição que A Escola da Noite tem agora em cartaz.
Perante aquele "cardume de rostos" onde se misturam, como registou Augusto Baptista (o fotógrafo da companhia e, também, jornalista, autor de livros de textos e desenhos sarcásticos, investigador de tradições populares ), "bigodes de Charlot, narizes de Gogol, orelhas de Van Gogh", surgiu a hipótese de criar um espectáculo em torno daquela colecção, juntando-se-lhe o conto de Kafka Um Artista da Fome.
Em couro ou em sisal, de tela ou de poliuretano , feitas a partir da pasta de papel ou de fibra de vidro, com colagens de revistas ou pintadas com purpurinas, cheias de pormenores ou em registo mais minimalista, lívidas ou escarninhas, evocando princesas ou palhaços, "as máscaras", conclui António Jorge , "tal como os teatros e as cidades, anseiam ser habitadas".
Afinal, como lembra logo à partida o actor-encenador no texto que escreveu para o programa-catálogo da peça-exposição 700 Máscaras à Procura de Um Rosto ouUm Artista da Fome, "a arte é uma inutilidade tão grande como o sonho e a liberdade".