Cem dias de Trump ou a prova de que um escorpião ataca sempre
Muitos acreditaram que, uma vez instalado na Casa Branca, Donald Trump vestiria a pele presidencial e seria menos trumpesco. Os primeiros cem dias de governo, que se completam hoje, mostraram que não. O presidente Trump continuou a ser Trump e a tuitar como o candidato Trump o fazia.
"Faz lembrar a história do sapo e do escorpião", graceja, em entrevista ao DN, Daniel Aldrich, professor de Ciência Política e diretor do programa de Estudos de Segurança da Universidade de Northeastern, em Boston. Segundo a fábula, o escorpião pede a um sapo que o ajude a atravessar um rio, prometendo que não o picará e argumentando que se o fizesse ambos morreriam. A meio da travessia, porém, acaba por ferrar o batráquio, dizendo que ninguém é capaz de fugir à sua natureza. "Tal como o escorpião, Trump também não consegue deixar de ser quem é", sublinha o politólogo.
Apesar da fidelidade à sua natureza, Trump não tem conseguido concretizar muitas promessas. "O melhor que aconteceu nestes cem dias foi a resiliência das instituições e dos mecanismos democráticos da política norte-americana, que puseram um travão aos planos de Trump", defende Aldrich.
Opinião diferente tem Max Abrahms, académico norte-americano e especialista em segurança internacional e terrorismo. Em conversa com o DN, este investigador entende que até agora o balanço é positivo. "No que diz respeito à luta contra o Estado Islâmico não houve uma grande mudança em relação à administração de [Barack] Obama. Trump continuou com a mesma abordagem. Isso é especialmente verdade no que diz respeito ao Iraque. Na Síria houve o ataque com os mísseis Tomahawk, mas isso foi algo principalmente simbólico", defende o especialista.
O presidente dos EUA esperava que fazer política fosse mais simples e muito mais parecido com a gestão de um negócio. "A atividade empresarial de Trump baseava-se na sua marca, mas em política as coisas não funcionam assim. É preciso compromisso, comunicação e diplomacia e o estilo de Trump não passa por aí", defende Aldrich. Além disso, a marca Trump está longe de ser valiosa em política. "Depois de cem dias, esta Administração tem o mais baixo nível de aprovação da história", acrescenta o professor de Ciência Política.
O próprio Donald Trump já admitiu que foi surpreendido pela complexidade da tarefa: "Isto é mais trabalhoso do que a minha vida anterior. Pensei que seria mais fácil", disse em entrevista à agência Reuters. Não foi o único a pensar que a presidência envolveria menos dores de cabeça. "Aprovar uma peça legislativa é o equivalente a desembarcar na Normandia. É preciso navios, tropas e aviões. E tudo tem de estar pronto no minuto certo no dia D", confessa Steve Bannon, o chefe de estratégia da Casa Branca, citado pelo Financial Times.
Inconsistência ou virtude?
Além de vários reveses, como no caso do Obamacare ou na proibição de entrada a muçulmanos, os primeiros cem dias de Trump ficam também marcados por avanços e recuos e mudanças de discurso. O exemplo mais recente é o NAFTA - Tratado Norte-Americano de Livre Comércio. Trump prometeu que iria rasgá-lo e retirar a assinatura dos Estados Unidos. Tudo se encaminhava nesse sentido quando o presidente mexicano, Enrique Peña Nieto, e o primeiro-ministro canadiano, Justin Trudeau, telefonaram a sugerir-lhe uma renegociação. "Eu disse que sim. Não quero prejudicar nem o México nem o Canadá. São dois países dos quais gosto muito", explicou Trump.
"Inconsistência" é a palavra que Daniel Aldrich mais vezes repete referindo-se a Trump, principalmente em matéria de política externa. "Garantiu que ia mandar a fatura para a NATO, mas depois já está tudo bem. Defendeu o isolacionismo norte-americano, argumentando que os EUA deveriam afastar-se das questões que envolvem os outros países, e depois disparou mísseis Tomahawk para a Síria", enumera Aldrich. Para este académico - que já viveu no Japão e investigou o programa nuclear nipónico - o medir de forças com a Coreia do Norte é caso para preocupação. "Deixe-me pôr as coisas desta forma. Tenho amigos no Japão que estão a comprar filtros de água, medicamentos e a investir em abrigos antibomba. E estamos a falar de pessoas muito racionais".
No que diz respeito à "inconsistência" de Trump, Abrahms de novo tem uma opinião distinta: "A consistência ideológica não é um critério importante para um bom líder. Prefiro as pessoas que são pragmáticas e que mudam de opinião com base em novas informações. Gostava de Obama exatamente por isso. Toda a gente critica Trump por mudar de opinião, mas, sinceramente, é isso que fazem os líderes espertos", defendem os analistas.
Está longe de ser essa a visão de Daniel Aldrich, que se mostra preocupado com o facto de Trump não procurar ouvir quem conhece as matérias: "Tenho amigos e colegas no Departamento de Estado que me dizem que nunca estiveram tão entediados. Ninguém está a usar a sua experiência e conhecimento."
A guerra com a imprensa foi outra das constantes dos primeiros três meses desta administração. Tanto que hoje o presidente não irá marcar presença no tradicional jantar dos correspondentes, que reúne os jornalistas que diariamente cobrem o que se passa na Casa Branca. Para Max Abrahms, o presidente tem razão nas queixas. "A CNN foi muito hostil quando ele disse que a NATO estava obsoleta, que ia retirar-se do NAFTA e que Assad não devia ser atacado. O que fez Trump? Atacou Assad, diz que afinal talvez seja melhor ficar no NAFTA e já não diz que a NATO é obsoleta. O que fez a comunicação social? Criticou-o por mudar de opinião. A comunicação social irá sempre atacar Trump seja qual for a política", lamenta o analista ao DN. Talvez os jornalistas também sejam escorpiões.