Céline Cousteau. A menina que cresceu a bordo do Calypso
Tem a ligeireza da bailarina que foi, mas também a musculatura de caráter de uma corredora de fundo. Céline Cousteau, 43 anos, é neta do mítico Jacques-Yves Cousteau e filha do primogénito deste, o também explorador Jean-Michel Cousteau. Embora admita que teve acesso a experiências apenas sonhadas pela maior parte das crianças, adverte que nem tudo é glamour e aventura na história da sua família. Muito naturalmente, depois de estudar Psicologia na universidade, tornou-se produtora, apresentadora e autora de documentários sobre a natureza e a biodiversidade. Hoje é conferencista convidada de várias instituições internacionais, incluindo as Nações Unidas.
Julga que as pessoas estão hoje muito conscientes da sua relação íntima com a natureza do que antes, quando a Humanidade se considerava "dona do mundo"?
Depende muito das pessoas ou do tipo de sociedade. Creio que há um número crescente de pessoas a interrogarem-se, de facto, sobre o modo como a espécie humana se relaciona com a natureza. É verdade que o facto de termos diminuído o ritmo das nossas atividades nos últimos dois anos por causa da covid-19 introduziu uma perspetiva interessante. Na conferência que vim fazer a Lisboa, centrei-me no modo como nós, indivíduos, nos ligamos a nós próprios. Quanto mais o fizermos, mais seremos capazes de cuidar de nós próprios e dos outros, o que nos tornará inevitavelmente mais conscientes da nossa relação com o planeta.
Que ferramentas podemos usar para chegar a esse objetivo, provavelmente menos simples do que parece?
Há muitas, mas podemos falar de ioga, mindfulness, meditação. Há muitas ferramentas disponíveis online, basta ter curiosidade para pesquisar e descobrir o que faz mais sentido para cada um. O mais importante talvez seja aprender a respirar corretamente. Se nos tornarmos conscientes da nossa respiração, e de onde nos chega o oxigénio, vital para a sobrevivência, sentiremos a necessidade de agir. E de nos tornarmos melhores pessoas. Mas claro que isto não chega. Temos também de trabalhar pelos direitos dos animais, de fazer reciclagem, de defender a preservação dos ecossistemas...
De envolver os políticos...
Absolutamente. E os agentes económicos, que nós também somos. Temos a responsabilidade de sermos consumidores conscientes e de nunca seguirmos obedientemente tudo o que a publicidade na TV ou nas redes sociais nos querem vender.
É também uma contadora de histórias, como demonstram os seus filmes.
Histórias de lugares remotos, sobretudo.
Foi assim que aprendeu português, a viajar para lugares remotos?
Um pouco de português, não falo muito. Foi na Amazónia, uma região com que senti uma ligação instantânea. Estive lá pela primeira vez aos nove anos, com a minha família. Voltei 25 anos mais tarde, com o meu pai, e entrámos no território javari no Brasil. Foi uma experiência muito especial, a tal ponto que três anos depois os javaris pediram-me que voltasse lá e mostrasse a sua história ao mundo. Disse logo que sim, sem saber ainda como o iria fazer ou se obteria financiamentos para isso. Só sabia que tinha uma responsabilidade enorme, porque foi aquele povo a escolher-me para contar a sua história e o modo como estão realmente ameaçados de extinção.
É aquilo em que está a trabalhar neste momento?
Sim. E, para além de filmar, criámos o Javari Project, uma organização que procura ajudar aquelas pessoas a preservar a biodiversidade do ecossistema em que vivem e a sua cultura, que é única no mundo.
Como é ser neta de Jacques-Yves Cousteau, um herói para tanta gente em todo o mundo? Teve uma infância especial?
Toda a minha família estava envolvida nas expedições. Assumo que foi uma infância diferente, mágica talvez, no sentido em que tive acesso a ver e a viver coisas que as outras crianças não tinham. Mas também significou ver muito pouco os meus avós, o meu avô estava sempre fora. Hoje posso dizer que essa família invulgar foi uma inspiração para mim, sobretudo as mulheres, nomeadamente a minha avó, que fizeram grandes sacrifícios para que as coisas acontecessem. A história da família Cousteau que o público conhece é apenas a ponta do icebergue.
Em que momento decidiu ser parte dessa história e seguir as pisadas da família?
Sabe uma coisa? Não sei se decidi. Na universidade estudei Psicologia, fiz um mestrado em Relações Interculturais, trabalhei como guia e produtora de cinema. Em determinado momento, o meu pai, que estava a trabalhar numa série, convidou-me para trabalhar com ele, dizendo que se eu conseguia fazer produção na área da ficção também o conseguiria fazer com documentários. E fui. A verdade é que tenho uma curiosidade inata e gosto de perceber o que se passa e de contar histórias. Para o fazer não temos que ser especialistas no que quer que seja, temos de ser curiosos, muito curiosos. Saber fazer perguntas.
Qual foi a sua primeira expedição de trabalho?
Foi no Alasca, em plena tundra do Ártico, onde, estando realmente um frio horrível, percebi o quanto gostava dos extremos da natureza. Ainda é assim. Adoro fazer parte da expedição, estar no terreno, ser parte da equipa, por muito duras que possam ser as condições.
De gorro vermelho e cachimbo, a figura magra de Jacques-Yves Cousteau (1910-1997) tornou-se parte do imaginário de várias gerações, que a associam a séries de televisão de enorme sucesso sobre as maravilhas naturais do mundo submarino, rodadas a partir do seu barco, Calypso.
Nascido em em Saint-André-de-Cubzac, França, em 11 de junho de 1910, Jacques cedo se apaixonou pelo mar, em boa parte devido às viagens feitas com a família na infância e juventude. Depois de ter criado, com Émile Gagnan, um equipamento de mergulho autónomo, que substituiu os pesados escafandros do princípio do século XX, comprou o Calypso, um caça-minas da Marinha dos Estados Unidos, que converteu em navio de pesquisas, porventura o mais famoso da sua espécie. Com a publicação do seu primeiro livro em 1953, O Mundo do Silêncio, que rapidamente se converteu num best-seller, o explorador surpreendeu o mundo da oceanografia e da zoologia ao falar, pela primeira vez, da capacidade de ecolocalização dos golfinhos, que tivera ocasião de observar ao ver como eles se organizavam em cardume enquanto seguiam o Calypso. Com a passagem de O Mundo do Silêncio a filme (coproduzido pelo cineasta Louis Malle), ganhou uma Palma de Ouro em Cannes, em 1956. Foi ainda diretor do Centro Oceanográfico do Mónaco, um dos mais prestigiados do mundo, e foi admitido na Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos.
Jacques-Yves contagiou os filhos com esta sua paixão pelas coisas do mar, mas a tragédia atingi-los-ia. A 28 de junho de 1979, Philippe Cousteau morreu quando o hidroavião que pilotava caiu no Tejo, perto de Lisboa. A morte de Philippe aos 38 anos afetou profundamente Cousteau, que até ao seu falecimento, quase 20 anos depois, não conseguiu falar sobre o acidente ou a perda do filho.
dnot@dn.pt