Celebrar os 80 anos de Aniki-Bóbó entre conversas e filmes

Para assinalar as oito décadas da primeira longa-metragem de ​​​​​​​Manoel de Oliveira, a Casa do Cinema, em Serralves, apresenta uma exposição, uma série de conversas e um ciclo de cinema, a decorrer até 18 de dezembro.
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Produzido no tempo do Estado Novo, em contraste com as comédias revisteiras da época, e por muitos considerado um precursor do neorrealismo, Aniki-Bóbó (1942) é hoje um dos títulos mais populares de Manoel de Oliveira. Uma primeira ficção erguida sobre as dúvidas de um realizador que se estava a formar: "Porquê uma história de amor entre garotos? Porquê tal tema como foco central? Eis a pergunta que faço a mim próprio! (...) Não estava na origem do conto que inspirou o argumento do filme, Os meninos milionários, magnífico poema literário de Rodrigues de Freitas. Pelo contrário, esta introdução de certo modo desvirtua a natureza do conto e sobre esse ponto me pode, também de certo modo, causar alguns remorsos. (...) [Havia] o atrativo do cenário natural e a riqueza do material humano que ofereciam os garotos. O resto viria de mim, mais inconsciente que conscientemente, mais veladamente do que reveladoramente transposto de uma experiência vivida na meninice."

Estas palavras de Oliveira, que se encontram no livro Ditos e Escritos, num texto de 1942 composto por uma série de impressões suas na qualidade de espetador do seu filme, traduzem o sentido de experimentação que esteve por trás de Aniki-Bóbó, primeira longa-metragem de um cineasta que vinha do documentário. Por isso mesmo, um filme com uma atenção documental às ruas do Porto, ao rio e aos pequenos intérpretes, crianças dos bairros da cidade, que explora um triângulo amoroso quase em tom de história de gangsters, evidenciando um realismo entre a poesia de Jacques Prévert e uma certa antecipação de Vittorio De Sica.

São os 80 anos desta obra, inicialmente mal-amada, que a Casa do Cinema Manoel de Oliveira (CCMO) celebra a partir de hoje, até 18 de dezembro - o dia da sua estreia, em 1942, no Cinema Éden em Lisboa. Comemorações na forma de uma exposição com documentos do filme, a partir do acervo do realizador, patente no foyer do auditório da CCMO, mas também num conjunto de conversas, a que se junta um ciclo de cinema, com o objetivo de refletir sobre o lugar de Aniki-Bóbó no contexto histórico e estético, mas também colocá-lo em diálogo com outros títulos da própria filmografia de Oliveira e de outros cineastas.

O arranque da iniciativa é marcado por uma conversa esta tarde (19h00), no Auditório da CCMO, com a historiadora Irene Flunser Pimentel, seguindo-se, ao longo do mês, outros convidados: o cardeal José Tolentino Mendonça (dia 15), a programadora da Cinemateca Maria João Madeira (dia 23) e o escritor Valter Hugo Mãe (dia 28).

Já o ciclo de cinema começa, no dia 5, com Zero em Comportamento (1933), talvez o filme mais célebre da curta obra de Jean Vigo, que se põe em relação com Aniki-Bóbó não só pelo olhar sobre o sistema educativo, neste caso francês, mas porque Vigo foi um dos cineastas mais apreciados por Manoel de Oliveira ("Jean Vigo e Jean Renoir são os dois realizadores mais irreverentes do cinema francês"). Na mesma sessão será exibido o fundamental e raro Little Fugitive (1953), coassinado por Ray Ashley e os fotógrafos Morris Engel e Ruth Orkin, que retrata a aventura de uma criança de sete anos, com o sonho muito americano de ser cowboy, a vaguear em Coney Island depois de uma partida maldosa do irmão mais velho. Um filme americano que influenciou outra das obras aqui programadas, o bem mais conhecido Os Quatrocentos Golpes (1959), de François Truffaut, a passar no dia 3 de dezembro, antecedido da curta En Rachâchant (1982), de Danièle Huillet e Jean-Marie Straub, esta baseada num conto de Marguerite Duras (Ah! Ernesto) cuja atitude central - um menino que se recusa a ir à escola - ecoa numa famosa sequência de Aniki-Bóbó, dentro da sala de aula...

Para além de duas longas-metragens de Manoel de Oliveira, A Caixa (1994) e o derradeiro O Gebo e Sombra (2012), que passam a 19 e 20 de novembro, ambas com afinidades internas com Aniki-Bóbó, há ainda Sciuscià (1946), de Vittorio De Sica, à volta de duas crianças pobres na Roma do pós-guerra (a questão do neorrealismo), e A Mulher que Viveu Duas Vezes (1958), o clássico de Hitchcock, com Kim Novak e James Stewart, cujas personagens estabelecem pontos de contacto com as crianças do filme de Manoel de Oliveira através de certos elementos narrativos. Um e outro serão exibidos, respetivamente, a 16 e 17 de dezembro.

De entre todos os títulos que neste ciclo abordam a infância, A Sombra do Caçador (1955) -com sessão no dia 26 de novembro - é aquele que se destaca por uma espécie de perfeição. Único filme assinado pelo ator Charles Laughton, The Night of the Hunter tem a aura, muitíssimo justificada, de obra-prima, com Robert Mitchum num papel memorável: um assassino em série que persegue duas crianças (filhos da sua última vítima) até se confrontar com um "anjo" protetor (Lillian Gish) que o impede de avançar. Qual a relação com Aniki-Bóbó? Sem dúvida, e muito mais do que o tema da infância, a revolução estética contida neste film noir modelado por uma luz expressionista que aponta para um terror com textura de sonho. Um traço grosso de modernidade numa obra clássica que, tal como o filme de Oliveira, criou a passagem para um novo cinema.

No dia 18 de dezembro, para encerrar devidamente as comemorações, é a vez de Aniki-Bóbó regressar ao grande ecrã do auditório da CCMO. Esse filme, segundo Manoel de Oliveira, vindo de alguém com "grande amor à verdade das coisas" e "liberto de qualquer preconceito-cinema". Como tratar o sonho? "Pensei com cândida singeleza que sonho e realidade têm a mesma expressão no cinema e o conteúdo se encarregaria de dar sentido às coisas."

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