Celebrar Abril com Durão na mira

Milhares de pessoas assinalaram ontem o 25 de Abril nas ruas de Lisboa e Porto
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Lisboa: «Muitos mil, para continuar Abril»

A manifestação dava os primeiros passos, encabeçada por uma enorme faixa vermelha onde se lia «25 de Abril Sempre». Mas o primeiro slogan entoado pelos manifestantes teve pouco a ver com a revolução.

«Está na hora, está na hora, de o Governo se ir embora» foi a palavra de ordem lançada pelos que seguiam à cabeça do desfile, sobretudo jovens. Um tema repetido, com variações, ao longo do percurso entre o Marquês de Pombal e o Rossio: «A luta continua, Portas e Barroso para a rua».

Não terá sido por falta de concordância, mas o slogan não foi repetido pelos representantes dos partidos da esquerda, que seguiam imediatamente atrás. Lado a lado estiveram Ferro Rodrigues, secretário-geral do PS, Carlos Carvalhas, líder do PCP, Miguel Portas, dirigente do Bloco de Esquerda e o ex-Presidente da República Mário Soares. Entre estes, os militares de Abril, com Vasco Gonçalves a recolher inúmeros aplausos ao longo de todo o percurso. «Obrigado, Vasco, obrigado», gritou-se dos passeios da Avenida. «Não têm nada que me agradecer, foi uma luta colectiva», diz Vasco Gonçalves ao DN. «Uma revolução», acrescenta, «não uma evolução - essa não a temos feito».

Carlos Alves, um entre os milhares de anónimos que ontem acorreram ao desfile, concorda com a apreciação. Todos os anos marca presença nas comemorações do 25 de Abril, para celebrar a data, mas desde há três junta-lhe um sinal de protesto. «Estou desempregado há três anos. Com a idade que tenho, 58, não consigo arranjar emprego.

É triste.» «Estamos na pior situação desde o 25 de Abril», concorda António Manuel. As críticas não se ficam pela situação interna: «Porque é que estamos numa guerra [no Iraque] com a qual não temos nada a ver? Mais do que nunca precisamos de paz.»

«Somos muitos, muitos mil, para continuar Abril», vai-se gritando pela Avenida. A extensão do desfile não contraria os manifestantes - 40 mil segundo a organização. As forças policiais contrariam - dizem ao DN que peca... por escasso. E avançam 70 a 75 mil.

Manifestantes que, para os políticos presentes - socialistas e comunistas em peso - celebravam o 25 de Abril, mas não só.

«As pessoas sentem que é preciso demonstrar, também na rua, que há uma grande insatisfação» com o Governo, diz Ferro Rodrigues.

«As pessoas querem mostrar que estão indignadas com as políticas do Governo», corrobora Carlos Carvalhas, líder do PCP, referindo-se às palavras de ordem contra o Executivo.

Já o ex-presidente Mário Soares destaca o desfile como uma resposta popular ao que chama de «piada de mau gosto e falta de bom senso» da direita: «É uma grande manifestação daqueles que pensam que o 25 de Abril foi uma grande Revolução - com R grande».

O tema foi omnipresente. Chegada a cabeça do desfile ao Rossio, seguem-se os discursos. Em representação dos mais jovens, Filipa Louro arranca aplausos: «Seria bom que a evolução estivesse tanto de parabéns como a revolução, mas não está.» O capitão de Abril Vasco Lourenço aponta no mesmo sentido: «Falta que a justiça e a saúde sejam céleres e eficazes; falta que o trabalho, a educação e a cultura sejam universais; falta que a cultura do rigor e da seriedade impeçam pontes de cair».

Canta-se Grândola Vila Morena. Entre a multidão, Céline, francesa, tenta desesperadamente tirar fotografias. Da revolução portuguesa só sabe o que viu no filme Capitães de Abril, das críticas que se ouvem não quer saber. Resume assim o que está a ver: «Sente-se uma grande emoção.»

Porto:Cravos vermelhos e cachecóis azuis

As T-shirts de Che misturadas com as de Deco, cravos vermelhos da Revolução de Abril e cachecóis azuis do FC Porto campeão na mesma festa. Da antiga sede da PIDE até à Praça da Liberdade, comunistas de várias gerações, bandeiras do PS e do BE, feministas com blusas a proclamar «meu ventre me pertence», sindicalistas a gritar que «o País só vai para a frente com uma política diferente», efígies do capitão Marcos e do poeta Ary. «O povo unido, jamais será vencido.»

Antes da manifestação - que abria com a filarmónica Foz do Douro a executar a Marcha do MFA, enquanto as mulheres que seguravam a faixa «pela alegria de viver dignamente em liberdade» imitavam Ermelinda Duarte cantando «uma gaivota, voava, voava» -, a «homenagem do povo do Porto aos democratas e antifascistas que neste edifício foram humilhados e torturados pela PIDE/DGS», como fica expresso na placa descerrada pelo governador civil, Manuel Moreira, o presidente do núcleo da Associação 25 de Abril, tenente-coronel Ribeiro da Silva,e o antigo preso e ex-deputado Raul Castro.

No sinistro edifício da Rua do Heroísmo - de onde fugiram Jorge Araújo, Silva Marques ou Palma Inácio - , o advogado Arnaldo Mesquita, que por lá passou, como detido, antes de ir parar ao Aljube e a Caxias, defendeu centenas de trabalhadores. E recorda que se mataram ali presos políticos com torturas, lembrando os casos dos seus constituintes Repas, um barbeiro de Fafe, e José Oliveira, operário dos estaleiros de Viana do Castelo. Ali por perto, crachá não à guerra no casaco, o comunista Luís Gouveia lembra que foi lá visitar o filho, então com 19 anos, e a mulher reparou que ele não apertara os atacadores, pois tinha sido submetido a cem horas de tortura da estátua.

Um quinteto de jovens estendidos no jardim perguntam quem é aquela senhora, apontando para o busto de Virgínia de Moura. Três são nacionalistas galegos, que dizem que «estamos a ser governados por um fascista», pois Fraga, lembram, foi ministro de Franco; o outro par que os acompanha são «espanhóis» de Burgos, que também admiram Portugal pelo 25 de Abril.

Parte a manifestação, com poetas e proletários, antigos de boina e jovens de piercing, reformados de bengala e deputados de Esquerda, bonés humildes e cachimbos intelectuais, num movimento em tons vermelhos e azuis até aos Aliados. No palco. o vocalista da Ronda dos Quatro Caminhos, João Pedro Oliveira, canta que estão os «craveiros com flor» - e há-os nas mãos e nos cabelos, nas lapelas e nos decotes.

Mesclam-se por ali anarquistas de Milão e signatários contra o bloqueio em Cuba, hippies que fumam haxixe e nostálgicos do cheirinho a alecrim do Chico Buarque, crianças de balão e algodão doce, africanos a dançar e ciganitas a vender pensos a quem quer comprar posters de Vieira da Silva ou Abel Manta. E o boneco Maulo Porais que os libertários, que editam os folhetos Coice de Mula e Fysga, vão queimar - toda a gente identifica o «facho do ano» com o vice-presidente da câmara. E ainda se escuta Zeca Afonso a cantar «a formiga no carreiro vinha em sentido contrário».

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