Cavaco e o regresso de Passos Coelho
Cavaco Silva disse que a não recondução de Joana Marques Vidal teria sido a decisão mais estranha da geringonça. Como toda a gente sabe, e Cavaco Silva sabe-o perfeitamente, quem nomeia o PGR é o Presidente da República. Aliás, foi ele a nomear Pinto Monteiro - facto de que tem andado muito esquecido. Ou seja, o ex-primeiro-ministro e ex-Presidente tentou deliberadamente enganar os portugueses.
Marcelo Rebelo de Sousa viu-se na necessidade de esclarecer: "Quem nomeia os procuradores é o Presidente da República." Mas disse mais. Disse que Cavaco o tinha visado dizendo uma espécie de aldrabice e explicou que o ex-presidente não tem sentido de Estado. Tem toda a razão.
As declarações de Cavaco Silva vêm na sequência da carta aberta de Passos Coelho a Joana Marques Vidal. Também nessa missiva o ex-primeiro-ministro assestava as baterias ao Presidente da República utilizando a mesma sonsa tática. A estratégia dos dois é evidente: colar Marcelo à geringonça. Além de ser um discurso mentiroso e que não pega, é de uma miserável cobardia.
Por muito que tentem, Marcelo nunca será visto como alguém de esquerda. O posicionamento político do professor é conhecido e ninguém com o mínimo de bom senso pensará que ele subitamente se tornou um homem de esquerda. O que o Presidente da República nunca será é um radical que acha que a política é uma espécie de guerra em que de um lado estão os bons e do outro os maus, em que não se deve dialogar com ninguém, em que se pode brincar com a solidez das instituições para ganhar meia dúzia de votos e, sobretudo, não vê com bons olhos esta deriva para a direita caceteira em que alguns querem colocar o PSD.
Depois vem a cobardia. Os críticos de Marcelo têm tanto medo da sua popularidade que não são capazes de dizer claramente o que andam a dizer à boca pequena ou através de insinuações baixinhas.
Mas a estratégia de tentar colar Marcelo Rebelo de Sousa à geringonça tem um alcance mais vasto. Melhor, visa também Rui Rio. Casa com a ideia mil vezes repetida de que Rio não faz de facto oposição. Que ele também é uma espécie de ajudante de António Costa. Ou seja, Marcelo e Rio fazem parte dos "outros" e é preciso alguém para encabeçar uma verdadeira alternativa.
Para esta estratégia foi necessário pôr umas pessoas no PSD a berrar sistematicamente contra o líder, acusando-o, lá está, de não fazer oposição. Foi preciso lançar pseudocandidatos à liderança, que toda a gente já percebeu que não passam de lebres e apenas servem para tentar dar a entender que há um grande descontentamento no PSD. Não estranhamente todos esses são os viúvos do passismo. Assim se mostra que só Passos Coelho pode ser a alternativa contra a geringonça - a que teria como aliados ou, pelo menos, colaboradores Marcelo e Rio. Se o plano era pouco óbvio, o aparecimento de Passos e de Cavaco na sequência da não recondução de Joana Marques Vidal tornou-o transparente.
Os viúvos de Passos bem tentaram arranjar um clone, mas não foi possível. Luís Montenegro nem precisou de chegar à praia para terem percebido que é preciso mais do que se dizer que se quer ser líder. Santana era apenas uma solução de recurso até que se arranjasse coisa melhor. Pedros Duartes e companhia nem chegaram a ser hipótese, servem apenas para vender a ideia de que a contestação a Rio é generalizada enquanto os viúvos radicais do PSD no Parlamento vão fazendo o seu trabalho de agitprop.
Casam-se várias vontades para o regresso de Passos Coelho. A daqueles que querem continuar e aprofundar a viragem para uma direita radical do PSD - que têm a orientação ideológica dos líderes do Observador -, os deputados do PSD que sabem que não serão reconduzidos por Rui Rio e, claro, o próprio Passos Coelho. Este não só ainda não engoliu ter ganho as eleições e não ser primeiro-ministro como vê, com Rio, posto em causa o trajeto de grande viragem à direita em que estava a colocar o PSD.
O episódio Marques Vidal gerou várias convulsões e teve muitas consequências políticas. No entanto, o que de mais significativo para o futuro próximo deixou foi o anúncio mais ou menos explícito da tentativa de Passos Coelho regressar à liderança do PSD. A única dúvida é quando.
Não vai ser o juiz que ajudou a validar a acusação do Ministério Público no caso Marquês, o que esteve envolvido na fase da investigação, que vai presidir à fase de instrução. A fase em que um juiz avalia se o Ministério Público fez bem ou mal em deduzir aquela acusação. São boas notícias para quem quer que uma condenação ou absolvição dos arguidos seja inequívoca. Não me parece que ninguém tenha dúvidas sobre a aberração que seria ter o mesmo juiz que validou a acusação numa primeira fase verificar se a acusação que ajudou a fazer estava certa ou errada. O problema, o grande problema, é que foi por mera sorte que essa aberração não aconteceu. Foi cara ou coroa, em que cara era a instrução ser efetivamente feita e coroa ser uma farsa - seria estranho se o juiz que validou as provas na investigação as não validasse agora. Ou seja, noutros processos que caiam nesse insulto à Justiça que é o TCIC, vulgo Ticão (cujas funções deviam ser exercidas pelo tribunal de instrução criminal), a possibilidade é de 50% de que haja a tal farsa. O mais extraordinário é que até há relativamente pouco tempo nesse tribunal só havia um juiz... E aparentemente estamos todos descansados com esta Justiça de cara ou coroa.
António Costa repetiu cinco vezes que o Infarmed ia para o Porto e, nas suas palavras, como não é um autocrata, o instituto fica em Lisboa. Não sendo propriamente um assunto de lana-caprina, julgávamos que um primeiro-ministro antes de fazer um anúncio desta importância teria mandado elaborar estudos sobre o assunto, ouvido especialistas, dialogado com os vários intervenientes. Mas não, disse coisas e brincou com os profissionais do Infarmed e com uma região. Depois quis dar a entender que era uma espécie de monstro centralista que era tão poderoso que não o deixava, por pouco que fosse, diminuir a macrocefalia do Terreiro do Paço. Se um governo que - como todos os outros - tem no seu programa acabar com a macrocefalia em que o país vive não consegue mandar um instituto para Lisboa, estamos conversados quanto ao seu inútil papel. Esta desculpa não passa de um embuste. O Infarmed não vai para o Porto porque o poder central não quer. Como não quer deixar de ter o poder todo à mão de semear. Esta história serve para consolidar a ideia de que nada fará diminuir a macrocefalia em que o país vive enquanto não houver uma efetiva passagem de poder político para as regiões. Eu, que nunca fui adepto da regionalização - particularmente nos moldes do referendo de 1998 -, fui vencido e convencido: nada mudará enquanto a regionalização não for feita.