Catarina Santana e André Louro. Os artistas que mudaram o rumo da Chanca

Há 10 anos que o casal de atores se mudou para uma pequena aldeia do concelho de Penela. Começou por transformar o pátio da casa em sala de espetáculos e agora desenvolve um programa cultural ao longo de todo o verão.
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Quando, em 2012, Catarina Santana e André Louro se instalaram na aldeia da Chanca, na freguesia de Rabaçal, concelho de Penela, ainda não sabiam o quanto viriam a contribuir para mudar o rumo daquela história de desertificação no interior. O guião estava escrito desde há anos, mas aquela mudança de vida do casal -- motivada pelos dois filhos pequenos, hoje com 13 e 11 anos -- reescreveu algumas páginas. Quem havia de imaginar, naquele tempo da troika em Portugal, que ali começava um plano de resgate de público e, sobretudo, de emoções? A ideia era mudar de vida, mas acabou por ser também criar vida numa região envelhecida: além de uma companhia de teatro profissional, fizeram nascer uma escola alternativa para os filhos, devolvendo crianças a um edifício desativado. Há muito que tinham intenção de sair de Lisboa, por diversas razões. Tinham amigos no concelho de Penela, a região já lhes despertara um interesse especial. Quando encontraram a casa da Chanca, foi uma espécie de "tudo alinhado" no universo. Os amigos também já tinham ligações ao mundo rural "e a este modo de vida", em que os vizinhos tratam por tu os ofícios, entendendo o Suão e os animais como na composição de Carlos Tê.

O namoro de Catarina e André está a fazer bodas de prata. O casal conheceu-se em 1998, n"A Barraca, durante a reposição da peça Fernão, mentes?, de Hélder Costa. Ela tem agora 47 anos, ele 49. A vida toda ao redor, num passo lento, que permite saborear cada pedaço da deslumbrante paisagem da serra de Sicó que se avista dali, da Chanca.

Nos últimos anos criaram um programa cultural (que começa agora e só termina em meados de setembro) envolvendo diversos parceiros: a Câmara, a DGArtes, as instituições e coletividades do concelho. Habituaram-se rapidamente à (comum) confusão entre o que é cultura e o que é entretenimento, mesmo com a sorte de encontrar (bons) parceiros. "Só assim tem sido possível encontrar verbas e disponibilizar trabalho profissional e especializado."

Há três anos, em plena pandemia, a Companhia da Chanca arriscou fazer um projeto que chegasse ainda mais perto das pessoas, para lá do pátio onde decorrem muitos dos seus espetáculos, na sua própria casa. Chama-se Dentro da Casa, à Beira da Aldeia e todos os anos tem somado novas dinâmicas. Desta vez percorre várias aldeias das freguesias do concelho, num misto de teatro, cinema ao ar livre, música e novo circo. "Na segunda edição, no ano passado, juntámos as instituições. Sabemos que quem lá está não pode sair a maior parte das vezes. E assim levamos até lá a cultura de proximidade. Começámos com a Casa Família Oliveira Guimarães (um lar de terceira idade), em Espinhal, que tem sido um parceiro importante", explica André Louro.

A conversa com o DN acontece ali mesmo, no pátio, à sombra de uma figueira e de um abrunheiro, no cimo do monte. Um concerto de cigarras certifica que julho vai a meio. Na Chanca, onde moram 30 pessoas, algo mudou desde aquele agosto de 2015, quando apresentaram O Sítio, a primeira peça realizada naquele chão. O casal de atores convidou cada um dos habitantes para o espetáculo. "Foi algo feito com muito amor, muito carinho e tempo", enfatiza André.

Para transformarem o quintal num local de espetáculos ao ar livre pediram aos vizinhos uns bancos corridos, montaram a plateia, e no final acabaram todos a partilhar uma merenda, pois cada um levou alguma coisa. Feitas as contas, eram 80 pessoas. No final, André concluiu que, "se calhar, o evento foi mais interessante do que o espetáculo. Mas o espetáculo tem de ser muito bom para o evento ser interessante. Estava aqui tudo misturado: os autóctones, as pessoas que vieram de fora, os recém-habitantes, os autarcas, como público. E conseguimos levar as conversas das pessoas a uma discussão que não seja partidária, futebolística ou religiosa. Ou de invejas locais. O teatro trabalha emoções. E é tão importante que as pessoas possam discutir", conclui, ele que, volvida uma década na Chanca, consegue agora discutir com os homens da tasca o filme do dia anterior, a peça, o concerto.

O Sítio fala de um casal de idosos, nas suas rotinas, que recebe um postal a anunciar o nascimento de um neto. E enquanto prepara a encomenda que quer mandar ao neto, há um incêndio, que ajudam a combater. Moram numa aldeia recôndita, "que pode ser de Portugal ou de outro país". São 50 minutos sem uma única palavra, que já percorreu todo o país e voou para o estrangeiro.

"Isso foi um estágio, aqui, onde apresentámos O Sítio. O trio de música Duas Chamadas Não Atendidas foi apresentado lá dentro, no salão, porque era inverno. Também As Gentes e os Gestos foi estreado aqui, e assim tudo se torna natural. Começamos a perceber a real curiosidade das pessoas em relação a outras estéticas de teatro e musicais", sublinha André. "Começámos a compreender que as pessoas estão dispostas a ver. E por isso fazia sentido haver um ciclo de programação, e ao longo dos anos trazermos um menu variado de espetáculos. Talvez daqui a 10 anos consigamos afunilar por um tema ou por um género, mas para já a nossa intenção é trazer um leque diversificado."

Catarina acredita que, a partir da Chanca, o casal está a conseguir criar um público. André sente-o quando vai pelas aldeias distribuir panfletos do evento, e quando diz que é da Companhia da Chanca "as pessoas já reconhecem". "Até em Coimbra", acrescenta Catarina, reportando-se ao momento em que nos serviços públicos diz onde mora.

Esse é um processo que vai acontecendo "devagarinho, porque sempre defendemos este conceito da arte lenta. Foi também por isso que saímos de Lisboa. Discutimos muito isso com parceiros artistas que fazem arte no mundo rural por essa Europa fora. No fundo, nós achamos que somos muito diferentes e não, todos temos o mesmo tipo de desafios. Só as condições [deles] é que são outras." E aponta o caso dos Países Baixos, em que "é o Ministério da Agricultura que financia companhias artísticas em meio rural". Compreende-se, frisa Catarina, "porque esta desertificação não é só de Penela nem de Portugal, é geral. Mas compreende-se que a cultura não só é um excelente investimento -- em que se recebe cinco vezes mais do que se investe -- e, sim, é responsável por fixar pessoas". De resto, há toda uma contabilidade local que ganha expressão: "Se há um espetáculo, a senhora vai ao cabeleireiro, vai arranjar as unhas. Cria-se então a economia circular. As equipas têm que se alimentar, e nós fazemos questão de usar o máximo de recursos do território", afirma.

Volvido todo este tempo, os dois atores acreditam que tomaram a melhor opção quando deixaram Lisboa e se fixaram numa aldeia do interior. "O facto de haver coisas a acontecer e uma reflexão que é proposta a uma comunidade faz com que as pessoas se encontrem e criem laços. Sejam um pouco mais significativos do que só dar o troco quando se vai comprar o papo-seco."

Olhando à distância, ambos não arriscam afirmar que mudaram a vida daquela comunidade, mas admitem que conseguiram "determinada influência". "Mudar a vida da comunidade é um processo longo. Nós não somos uma empresa multinacional que nos instalamos no concelho de Penela e de repente damos emprego a cinco mil pessoas. Mas conseguimos ter uma influência, sim, pelo menos nos nossos vizinhos do lado: estamos a fazer ensaios e eles ouvem-nos, fazemos barulho, interferimos no quotidiano. E gostamos que as pessoas venham falar connosco, até podem não gostar daquilo que apresentamos. Porque, acima de tudo, somos membros da comunidade", diz André. E é nela que encontram as mais diversas reações. "Sobretudo uma tomada de consciência que às vezes notamos, sobretudo nos idosos, quando percebem que estiveram privados ao longo de uma vida inteira desse contacto com a emoção", acrescenta Catarina. É a essa a cena em que o trabalho dos dois sai fora do entretenimento. "Vamos a outros locais."

São as métricas que ditam conceitos, e à luz delas ela reconhece que ele tem razão: "Não criámos cinco mil empregos nem fazemos espetáculos para quatro mil pessoas. É a outra escala. Mas, se calhar, as métricas é que têm de ser mudadas. Por exemplo: é contabilizado o número de mulheres que pedem o divórcio, depois de terem estado em contacto com a arte e com a cultura, conscientizando-se que estão em relações abusivas? E a conversa mais profunda que temos com a vizinha, que vai fazer com que as pessoas lutem um pouco mais pela melhoria das suas condições de vida, pela sua própria paz espiritual, emocional? Por se defender de alguma tristeza ao longo da vida? É sempre uma questão de métrica." No desenvolvimento da sua própria bitola há o tempo e o modo. "Uma das vantagens nestes territórios de baixa densidade é que o contacto e a comunicação são fáceis", aponta André. Catarina chama-lhe uma certa "desierarquização", pelo facto de ser em pequena escala, o que lhes facilita imenso o trabalho. Já o paternalismo (que ainda encontram, de quem lhes põe a mão no ombro porque fazem cultura no interior), dispensam.

Os dois consideram ter uma missão enquanto artistas: trabalhar os temas da ruralidade com conhecimento de causa. "Os nossos espetáculos terminam sempre com uma conversa com o público. E por isso constantemente ouvimos isso de quem nos admira por fazermos o que fazemos no interior. Eu tento sempre desconstruir isso: há imensas coisas que estão muito facilitadas e a comunicação com os parceiros é uma delas."

E como é que a Chanca mudou cada um dos dois -- tantas vezes em desacordo. Catarina tem a resposta na ponta da língua: "Está a ser uma oportunidade de ficar mais sábia mais rapidamente." Ela que sempre viveu em cidades grandes (Lisboa, Caracas, Lyon, Bruxelas) nem sequer tinha "uma terra dos avós para ir nas férias". Já ele, natural de Estarreja, passou a infância a fazer cabanas com paus e a subir às árvores. A vida na Chanca devolveu-lhe, por isso, toda a ruralidade perdida.

Catarina fecha o pano desta conversa com uma deixa que usa muito: "Ao viver numa pequena escala, consigo compreender melhor as situações. E assim ter oportunidade de (continuar a) compreender melhor o mundo. Além de conviver com beleza o dia inteiro." Quase como na canção de Elis Regina, em que uma casa no campo permite ficar do tamanho da paz.

paula.sofia.luz@ext.dn.pt

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