Catarina, a Grande. Europa, a pequena
O Diário de Notícias deu-nos ontem a oportunidade de conhecermos o sentido da vida de Catarina Barros de Sousa, a razão por que estava em São Tomé e Príncipe e como podem os cidadãos de Lisboa prestar-lhe hoje a última homenagem.
Catarina não era apenas uma "luso-sãotomense violentamente assassinada" no interior de um modesto hotel-natureza em ambiente paradisíaco, como diziam as notícias frias de agência no final do dia de segunda-feira. Afinal ela era muito mais que isso: uma mulher que há uma dúzia de anos rumava àquele país africano, onde mantinha um emprego para viver e, no essencial, dedicava parte da sua vida a ajudar as crianças. Tinha 51 anos e esta era a missão que escolheu. Uma vida para os outros. A foto que acompanha o texto de ontem toca-nos pelo que revela na graça daquele sorriso, pela liberdade de escolha de um destino junto dos mais pobres, pelo tanto que fica agora como vazio insubstituível em São Tomé e Príncipe.
Ao ler o texto sobre Catarina Barros de Sousa, lembrei-me de Sérgio Vieira de Mello, o representante das Nações Unidas morto no Iraque e de como também ele foi uma cratera no nosso coração coletivo - insubstituível até hoje, e já lá vão quase 20 anos. Vale a pena ver o documentário sobre a vida de Sérgio no Netflix.
Pessoas como estas são o cimento do mundo. Quando partem, a fissura cresce. Ainda por cima, são muitas vezes arrancados do mundo pela violência - como se o mal não conseguisse suportar tanta ousadia a favor dos mais frágeis.
Catarina faz parte dessa extraordinária "família" de gente que continua a rumar, por exemplo, ao Mediterrâneo para salvar centenas de seres humanos - e a muitos outros pontos do mundo, como Líbia ou Sudão.
Chega-nos agora a dimensão de um novo desastre humanitário, na fronteira entre a Turquia e a Grécia, com dezenas de milhares de refugiados a quererem entrar na Europa ao mesmo tempo que a guerra na Síria volta às notícias.
A União Europeia parecia ter conseguido conter os surtos migratórios a Sul. Na verdade, a desigualdade do mundo torna isso impossível porque este velho continente ainda é um sonho de condições de vida e liberdade. Algo pela qual vale a pena arriscar a vida.
Além disso, a Comissão Europeia tem obrigação de saber que a chantagem turca nunca dará tréguas - embora não deixe de ser verdade que não podem ser a Turquia ou o Líbano a segurarem sozinhos a avalanche de milhares de famílias sírias à procura de uma vida digna.
No coração desta crise de migrantes está sempre a incapacidade da Europa em acolher as pessoas que a rejuvenesceriam e salvariam do declínio geracional. Razão essencial para esta recusa: o preconceito religioso, mais do que o cultural. Cinco séculos de iluminismo não foram suficientes para mudar o medo.
Os ciclos repetem-se: voltamos às trevas, a uma espécie de Inquisição à distância, desta vez não através do fogo, mas praticada nas águas mediterrânicas, onde os cadáveres se acumulam.
Entretanto, no meio destas catástrofes, quem cuida das crianças? De todas as crianças deste mundo apanhadas no meio da guerra, da fome, da orfandade? Pessoas como Catarina Barros de Sousa. Ontem os amigos sãotomenses despediram-se dela rumando em cortejo a pé até ao aeroporto, de onde partiu para Lisboa.
Hoje serão os seus amigos de cá.
Catarina, cara amiga que nunca conheci, que recebas no Céu mil vezes o que deste a tantas crianças por este mundo. Fico com o teu sorriso no coração.