Caster Semenya tinha 16 anos em 2007. Terminada uma prova, dirigia-se a uma casa de banho escoltada por agentes antidoping para lhe ser efetuado um controlo. Um dos primeiros dias no escritório - tem passado a vida, sobretudo na última década, desde que se tornou campeã mundial dos 800 m aos 18 anos, em 2009, entre testes, análises e escrutínios clínicos, públicos e privados. Que até questionaram a sua identidade sexual. "O que está um rapaz a fazer aqui?", lançou-lhe outra atleta, de nome Violet Raseboya. Raseboya, que uns largos meses depois passou a ser a sua namorada e é hoje esposa da bicampeã olímpica e mundial dos 800 m..Semenya nasceu com um corpo de protesto (o seu metabolismo produz naturalmente níveis elevados de testosterona, considerados uma vantagem competitiva desleal), tratado como ameaça pelo desporto e instâncias judiciais cívicas e desportivas. A sua luta contra a Federação Internacional de Atletismo (IAAF, na sigla inglesa) está longe do fim. Na passada terça-feira, o Tribunal Federal Suíço reverteu uma decisão que tinha tomado em junho e aceitou o regulamento criado em 2018 pela IAAF, que obriga mulheres atletas de 400 m, 800 m e 1500 m a submeterem-se a tratamentos hormonais para baixarem os níveis naturais de testosterona. Semenya recusa-se a fazê-lo e falhará a defesa do título nos Mundiais que decorrerão em Doha, de 27 setembro a 6 outubro. Ela que nas pistas não perde uma corrida de 800 m desde 2015..Em maio, o Tribunal Arbitral do Desporto (TAD) tinha aceitado o novo regulamento da IAAF como "discriminação necessária", mas Semenya recorreu para a mais alta instância judicial suíça, que começou por suspender a aplicação do regulamento à atleta sul-africana, mas mudou a decisão nesta semana. As corredoras destas distâncias cujos metabolismos produzam naturalmente elevados níveis de testosterona (acima dos 5 nanomoles por litro de sangue - nmol/L; nos homens, não há limite e o espectro normal aponta para entre 7,7 e 29,4 nmol/L) têm três hipóteses..Lembra-as Luís Horta, que liderou o combate ao doping em Portugal durante 16 anos (em várias funções, tais como presidente da ADOP - Autoridade Antidopagem de Portugal) e que esteve a implementar um programa antidoping no Brasil entre 2014 e 2016, antes de ser consultor para o programa antidoping do Benfica (entre novembro de 2017 e junho deste ano). "Podem não participar, como a Semenya; podem submeter-se a tratamentos farmacológicos para baixarem os níveis de testosterona segregados endogenamente; ou competir no género masculino." "Disto pouco se tem falado. E isso é que é um absurdo total. Não sei como é que uma federação internacional consegue escrever uma coisa destas. É inadmissível", diz o médico que trabalha em reabilitação no Hospital Curry Cabral..Corre, Mokgadi, corre.Mokgadi Caster Semenya nasceu na vila de Ga-Masehlong, cresceu noutra pequena localidade (Fairlie) da região do Limpopo (nas profundezas rurais do norte da África do Sul) e fazia da natureza o seu local de treinos. Para jogar futebol. Em 2008, não se qualificou para a final dos 800 m dos mundiais de juniores, mas ganhou a medalha de ouro da sua especialidade nos Jogos da Commonwealth para a Juventude, com um tempo de 2.04,23 minutos. E chegou 2009. No final de julho foi campeã africana de juniores, retirando quase oito segundos ao seu registo (1.56,72 minutos). O mundo espantou-se, mas rendeu-se-lhe no mês seguinte, nos Mundiais de Berlim, entre 15 e 23 de agosto: tornou-se campeã aos 18 anos com 1.55,45 minutos, mais de dois segundos à frente da segunda (1.57,90), a queniana Janeth Jepkosgei. E começou aqui a interminável batalha com a IAAF..O organismo que regula o atletismo mundial exigiu testes de verificação de sexo, alegando que retirar oito segundos ao registo nos 800 m (e cerca de 25 segundos nos 1500 m) "configurava o tipo de casos que levantam suspeitas de uso de doping". Acusações de sexismo, racismo e misoginia levantaram-se entre ativistas e desportistas como o campeão de velocidade Michael Johnson. Mas a IAAF manteve-se irredutível. E só em julho de 2010 levantou a suspensão a Semenya, decorrente da investigação iniciada com o teste de verificação de sexo..Em 2011, a IAAF adotou uma política restritiva quanto aos níveis de testosterona, que obrigou Semenya a ser frequentemente testada. Logo nesse ano, a sul-africana revalidou em Daegu (Coreia) o título mundial conquistado em Berlim. Daí para cá, Semenya tornou-se bicampeã olímpica, em Londres 2012 (esse título chegou administrativamente porque a russa Mariya Savinova foi banida para sempre do atletismo por usar substâncias proibidas), e Rio 2016. E voltou a ser campeã mundial em 2017, em Londres. Isto já depois de a IAAF suspender, no final de 2015, a política de restrição dos níveis de testosterona - produzida naturalmente, note-se..O engenheiro físico Pedro Carreira, da direção da ILGA Portugal, organização não governamental de Intervenção Lésbica, Gay, Bissexual, Trans e Intersexo, foi atleta federado entre 1992 e 2015 ("esforçado, mas modesto", foi campeão nacional de estafeta 4x100 m há cerca de 15 anos pela Casa do Povo de Corroios).."Percebi que existe um grande foco nos níveis de testosterona de uma mulher. É questionável se esse é um fator que a possa excluir. Os grandes atletas têm todos características físicas que os distinguem. As mulheres do salto em altura têm mais do que 1,80 m. Deveria colocar-se um limite para a altura das atletas?", questiona-se o ativista dos direitos de género e identidade sexual. "A Semenya tem sido pressionada por diversos testes, até porque parece que têm sido moldados para a impedir de competir", acrescenta..Luís Horta prevê que "isto ainda vai acabar no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem". Já Alexandre Miguel Mestre, ex-secretário de Estado do Desporto, advogado especialista em direito do desporto, nem hesita: "[Este regulamento] afronta o direito ao livre e pleno desenvolvimento da personalidade humana, inscrito na Declaração Universal dos Direitos do Homem. Estigmatiza, marginaliza atletas que, pela sua condição física, são mais vulneráveis, no desrespeito pela dignidade da pessoa humana, princípio fundamental do olimpismo, constante da Carta Olímpica. Ora, uma das mais importantes convenções de direitos humanos da ONU, a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres, prescreve que a igualdade entre homens e mulheres pressupõe as mesmas possibilidades de participar ativamente nos desportos."."Se pode chegar ao Tribunal Europeu dos Direitos Humanos? Sim. E seria importante. Até porque, até agora, por diferentes motivos, nem o TAD nem o Tribunal Federal Suíço analisaram a questão no ângulo da proteção internacional dos direitos humanos", conclui o antigo membro do Conselho Diretivo da Academia Olímpica de Portugal..A advogada de Semenya, logo após o conhecimento da decisão do tribunal suíço, apontou o caminho: "Vamos continuar com o recurso da Caster e a lutar pelos seus direitos humanos fundamentais. Uma corrida decide-se sempre na linha de meta", disse aos jornalistas Dorothee Schramm..ENTREVISTA."Este caso vai chegar longe e fazer a devida jurisprudência".LUÍS HORTA. Médico e ex-presidente da ADOP.De que vantagens da Caster Semenya fala a Federação Internacional de Atletismo? O que se passa com a Semenya já se tinha passado com a Chand. Têm hiperandroginismo. Nascem com um polimorfismo genético, uma alteração que no caso delas significa maior produção de testosterona. O aumento de testosterona leva a que tenham uma maior percentagem de massa muscular, mais força e maior potência, o que tem vantagens competitivas. E também uma maior concentração de hemoglobina, permitindo maior capacidade de transporte de oxigénio no sangue, o que também traz vantagens competitivas..E que culpa é que ela tem? Essa é a questão. Não houve nenhum método exógeno que levasse a que ela seja assim. Nasceu assim. Veio ao mundo assim. E a primeira coisa que se pode colocar é essa, todos somos diferentes. Quando trabalhamos na deteção de talentos, procuramos características morfológicas e atléticas que permitam elevados rendimentos desportivos em determinada modalidade. Eu, por exemplo, fui selecionado para o fundo no atletismo porque tinha hemoglobina alta, era franzino, tinha um rendimento desportivo superior ao dos comuns. Numa disciplina aeróbia como a maratona era fundamental. O Ian Thorpe, quando o vi ao vivo nos Jogos da Commonwealth, o tamanho daqueles pés, fiquei de boca aberta..Qual é a sua posição em relação a esta disputa? É muito difícil. Não tenho posição concreta, estou muito dividido. Há pessoas que dizem que são contra e pessoas que dizem que este regulamento é essencial para repor a verdade competitiva. Não tenho nenhuma posição extremista. E quem a tem está errado, porque não há nenhuma evidência científica. A administração exógena da testosterona leva ao aumento da capacidade competitiva. Por isso está na lista de substân cias proibidas. O primeiro fator a favor é: que culpa tem a Caster Semenya de ter nascido mulher e com um valor superior de testosterona? Ela deve ter oportunidade igual à de outra mulher. O que penso que está em causa é um princípio muito importante no direito, o princípio de proporcionalidade. O regulamento da IAAF é proporcional ao que pretende defender? De querer nivelar as mulheres numa determinada modalidade ao ponto de obrigar uma mulher a um tratamento fármaco para reduzir segregação hormonal natural? O próprio acórdão do Tribunal Arbitral do Desporto é discriminatório, mas o suficiente para defender muitos atletas. Do ponto de vista científico, posso compreender que na realidade esta atleta tem uma vantagem competitiva. Do ponto de vista ético, eu percebo que há determinados direitos da atleta que estão a ser postos em causa..Seria, então, um caso para o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos? Não sei até que ponto este caso não irá parar ao Tribunal Europeu dos Direitos Humanos. Mas vai chegar longe e fazer a devida jurisprudência..Poderá estar em causa a com petição dividida em masculinos e femininos? Pode haver uma nova formulação no futuro. Com os transexuais, vai haver outras classificações, além de homens e de mulheres. O mundo evolui.