Sócrates. Os três dias que acabaram com uma relação de 37 anos

Sócrates decidiu deixar o partido assim que ouviu Carlos César a falar em vergonha. Direção do partido surpreendida com ex-líder
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Carlos César, presidente do PS, recebeu ontem ao fim da manhã, por um portador, na Assembleia da República a carta com que José Sócrates comunicava a sua desfiliação do PS - partido onde se havia inscrito em 1981. Uma carta seca, de duas linhas, meramente administrativa, sem considerações de substância.

Essas tinha-as o ex-líder do PS deixado para um artigo ontem publicado no Jornal de Notícias. O artigo fora pensado exclusivamente para Sócrates defender o seu ex-ministro da Economia Manuel Pinho (suspeito de corrupção no processo EDP e que terá recebido do BES uma avença enquanto esteve no Governo, de 2005 a 2009). Quando o artigo já estava escrito, Sócrates ouviu as declarações de Carlos César na TSF, quarta-feira, onde o presidente do PS se afirmava "envergonhado" e "enraivecido" por causa dos casos de Sócrates e Pinho ("a confirmarem-se" as suspeitas). Nessa altura decidiu acrescentar um post scriptum: "Durante estes quatro anos não ouvi por parte da Direção do PS uma palavra de condenação destes abusos [da Justiça], mas sou agora forçado a ouvir o que não posso deixar de interpretar como uma espécie de condenação sem julgamento." Portanto: "A injustiça que agora a Direção do PS comete comigo, juntando-se à Direita política na tentativa de criminalizar uma governação, ultrapassa os limites do que é aceitável no convívio pessoal e político. Considero, por isso, ter chegado o momento de pôr fim a este embaraço mútuo. Enderecei hoje uma carta ao Partido Socialista pedindo a minha desfiliação do Partido." César foi a gota de água. Quanto Augusto Santos Silva e o próprio António Costa fizeram pronunciamentos públicos semelhantes aos do presidente do partido, quinta-feira, Sócrates já tinha decidido. Nem um nem outro sabiam o que aí vinha.

Sendo certo que César, Costa, Santos Silva, Fernando Medina e João Galamba atuaram concertadamente, desde quarta-feira, a demarcarem-se de Sócrates e de Pinho, a verdade é que não esperavam esta decisão do ex-líder do PS e ex-primeiro-ministro. Uma resposta, sim - mas não esta. No Canadá, onde se encontra em visita oficial, António Costa assumiu-o: "Fico surpreendido, porque não há qualquer tipo de mudança da posição da direção do PS sobre aquilo que escrupulosamente temos dito desde o início: Separação entre aquilo que é da justiça e aquilo que é da política."

Para uns, a decisão de Sócrates de deixar o partido até significa que esse ataque concertado correu "melhor do que a encomenda". Mas há quem, entre os apoiantes de António Costa dentro do partido, receie que estando agora o ex-líder e ex-primeiro-ministro liberto do partido, comece agora a "pôr a porcaria na ventoinha" (expressão de um dirigente ao DN), expondo tudo o que sabe sobre os dirigentes do partido de quem, nestes quatro anos, não ouviu uma palavra de apoio. Sócrates liderou o PS de 2005 a 2011 mas desde pelo menos 1995 que frequenta as altas esferas da cúpula socialista (integrou as direções de Guterres e de Ferro Rodrigues antes de ascender a secretário-geral).

O fator decisivo que levou a direção do PS a atuar concertadamente para se demarcar de Sócrates terão sido as declarações de Rui Rio. A propósito das suspeitas sobre Manuel Pinho (a de acumular recebimentos do BES com o ordenado de ministro), o líder do PSD passou ao ataque e exigiu a audição de Pinho no Parlamento (proposta que o Bloco de Esquerda cavalgou propondo uma comissão de inquérito parlamentar cujo âmbito irá de Durão Barroso ao atual Governo).

Com as afirmações de Rui Rio, António Costa e os seus camaradas perceberam que o "caso Sócrates" continuava a ter tudo para atingir o partido permanentemente, mesmo em 2019, ano de eleições europeias e de eleições legislativas (e ano em que provavelmente começará o julgamento do ex-primeiro-ministro).

A direção do PS não queria - ao contrário do que Ana Gomes pediu há já duas semanas ((ver entrevista) - que o próximo congresso do partido, de 25 a 27 deste mês, na Batalha fosse "atingido" pelos estilhaços do caso Sócrates. Mas depois do que aconteceu nos últimos dias sabe que não terá outro remédio senão falar do assunto. Carlos César, por exemplo, planeia ter o tema da corrupção no seu discurso (que abrirá os trabalhos), enaltecendo o facto de o partido ter avançado no Parlamento com um processo legislativo que visa o reforço das condições de transparência com que se exercem cargos públicos e políticos em Portugal. Mas há quem também espere velhos adversários internos de Sócrates - por exemplo, os poucos que restam ativos da direção de António José Seguro - agitem o caso.

Ontem, em declarações ao Público, Manuel Alegre - que já tinha dito ao DN há duas semanas ser contra o debate deste tema no congresso - admitiu que agora não há mesmo outro remédio, depois da barragem de críticas desencadeadas pela direção que levaram o ex-líder a desfiliar-se. "Abriram o saco dos ventos e agora não vão conseguir escapar ao tema no congresso. Repito: não é o local próprio mas agora vão mesmo de ter o tema no congresso." Quem se sabe que não quer o tema discutido na Batalha são os poucos amigos que restam a José Sócrates dentro do PS. Ontem, no Facebook, dois deputados eleitos pelo Porto, Renato Sampaio e Isabel Santos, pediram que a reunião máxima dos socialistas seja marcada por uma "rigorosa contenção verbal" e por "serenidade". Sem destinatário assumido - mas visando a direção do partido - Isabel Santos deixou uma acusação: "Não se apagam incêndios com gasolina!"

O comentário de Marcelo

Confrontado pelos jornalistas à margem de uma deslocação a Évora, o Presidente da República as três razões que o levavam a impedir de comentar o caso: trata-se de um caso individual, que está a cargo da justiça e que envolve a vida interna de um partido.

Contudo, perante insistências, recordou os seus pergaminhos a defender a separação entre política e negócios: "Quando fui líder partidário, num congresso, fiz um grande ataque às ligações que havia ou podia haver entre setores económicos e políticos. Isso é em geral." E agora - acrescentou - a Assembleia da República "está permanentemente atenta àquilo que é preciso fazer para que não haja dúvidas".

Costa e Sócrates: Uma espécie de adversários

Saíram da mesma fornada de "jovens turcos" da direção de António Guterres. António Costa, José Sócrates e António José Seguro. Na verdade, todos eles - incluindo Costa e Sócrates - foram uma espécie de adversários íntimos, porque todos tinham na mira a liderança do PS. Aliaram-se sempre que foi preciso. Estiveram juntos no primeiro governo de Guterres, um logo como ministro da Administração Interna (Costa), o outro primeiro como secretário de Estado e depois ministro-adjunto do primeiro-ministro. Repetiram no segundo governo de maioria relativa do atual secretário-geral da ONU. O facto de nunca terem sido propriamente amigos, não impediu que Costa aceitasse integrar o governo de Sócrates em 2005, onde permaneceu até 2007 (altura da foto), quando deu o salto para uma candidatura à Câmara de Lisboa, que ganhou.

Cronologia

A pergunta: 5 de junho de 2011 - Dia de eleições legislativas. O PSD de Passos Coelho derrota o PS de Sócrates, no poder desde 2005. Na noite eleitoral, no Hotel Altis, em Lisboa, uma jornalista da Rádio Renascença, Susana Martins, pergunta a José Sócrates se este, deixando agora de ser primeiro-ministro, não receia que isso "abra caminho" a "novos processos judiciais ou acelere processos em curso". Os militantes presentes na sala apupam a jornalista. E Sócrates responde: "Não consigo compreender essa pergunta." "A justiça nada tem a ver com a política", diz ainda.

Inquérito: ​​​​​​Julho de 2013 - No maior dos segredos, o MP abre um inquérito a José Sócrates. A iniciativa decorreu de uma outra investigação que já decorria desde 2011, ao seu amigo Carlos Santos Silva.

Detenção: 21 de novembro 2014 - Ao chegar a Lisboa vindo de Paris, José Sócrates é detido para interrogatório. Rosário Teixeira conduz o processo pelo lado do MP, sendo Carlos Alexandre o juiz de instrução. Este acaba por decretar a prisão preventiva do ex-primeiro-ministro. Sócrates, suspeito de corrupção, passa a ocupar a cela 44 do Estabelecimento Prisional de Évora. Será visitado por vários amigos ao longo dos meses, nomeadamente por Mário Soares, o grande aliado que lhe resta no PS.

Prisão domiciliária: 4 de setembro 2015 - José Sócrates deixa a prisão de Évora, onde esteve 288 dias. Passa à situação de prisão domiciliária, sem pulseira eletrónica. Em 16 de outubro é libertado - mas o inquérito prossegue.

Acusação: 11 de outubro 2017 - Surge o despacho de acusação. A "Operação Marquês" tem 28 arguidos, começando por Sócrates, continuando no seu amigo Carlos Santos Silva, e acabando no banqueiro Ricardo Salgado e nos antigos patrões da PT Zeinal Bava e Henrique Granadeiro. É o regime que se encaminha para julgamento. Sócrates está acusado de corrupção, branqueamento de capitais, falsificação de documentos e fraude fiscal.

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