Caso Galamba abre crise entre Costa e Marcelo

Presidente da República assume discordância total com primeiro-ministro que não aceitou a demissão de Galamba. Marcelo diz que "prestígio das instituições", ao contrário do que diz Costa, obrigaria a remodelação no governo.
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O que Carlos César pediu ("A necessidade de ver, ministério a ministério, setor a setor, se há ou não necessidade de algum refrescamento (...) porque "alguns desses ministros ou ministras não cumpriram as expectativas"); o que Alexandra Leitão constatou ("É preciso fazer alguma coisa dentro do governo que pode passar por uma remodelação"); o que Vitalino Canas observou ("É um governo em que os bons e os maus entraram numa espiral de quem não tenho a certeza que consiga recuperar"); e nem mesmo o que Marcelo Rebelo de Sousa deixou como aviso, no dia em que João Galamba subiu a ministro das Infraestruturas e Marina Gonçalves a ministra da habitação, ficando dividido o anterior ministério em dois ("O critério é fazer com a prata da casa para não mexer muito naquilo que existe. Vamos ver. Se isso funcionar é uma boa ideia, se não funcionar retiraremos daí as conclusões") foi suficiente para que António Costa apresentasse ao Presidente da República uma "remodelação alargada" ou "politicamente significativa ", tal como fonte governamental admitiu, ao DN, ser previsível que acontecesse na altura em que Pedro Nuno Santos saiu do governo.

"O Presidente ainda continua sem margem para mais, a não ser falar. E continua sem ver alternativa", explica a mesma fonte.

O previsível na primeira semana de janeiro - e nesses dias Marcelo argumentava que "o ano de 2023 é muito importante, é o ano em que vamos ver se há a eficácia que desejamos na execução dos fundos europeus e no avanço do país. Se for necessário ir mudando o Governo, muda-se o Governo. Se para isso basta o que já se mudou, veremos se é suficiente" - ficou reduzido a acertos.

Mas ficou um aviso. "A minha sensação", disse Marcelo, "é que [Costa] preferiu a ideia de escolher o que menos mexia, acreditando que assim se perde menos tempo (...) ou escolhia o caminho de aproveitar uma situação destas para inovar ou para continuar e mexer o mínimo possível. Escolheu a segunda via, é o primeiro-ministro que escolhe e ao escolher, naturalmente, conforme os resultados, assim será um sucesso ou não. Isso cairá em cima do primeiro-ministro".

E caiu. Galamba que entendia, no dia 29, na semana passada, ter "todas as condições para participar neste governo", mas depois da reunião de desta terça-feira com Costa - de manhã tinha surgido a "pressão de Marcelo, no Expresso, pedindo a sua saída - , da reunião do PM com Mariana Vieira da Silva, Ana Catarina Mendes, Duarte Cordeiro, Pedro Adão e Silva, Fernando Medina e o secretário de Estado adjunto António Mendonça Mendes, e do encontro de chefe do governo com Marcelo, apresentou a demissão, depois das 8 da noite, porque "o ruído se sobrepõe aos factos, à verdade e à essência da governação".

"Demito-me apesar de em momento algum ter agido em desconformidade com a lei ou contra o interesse público que sempre promovi e defendi na minha atuação enquanto governante, tal como foi, detalhada e publicamente, reconhecido pelo Senhor Primeiro-Ministro. Reitero todos os factos que apresentei em conferência de imprensa sobre os acontecimentos ocorridos e reafirmo que sempre entreguei à Comissão Parlamentar de Inquérito à TAP toda a documentação de que dispunha", escreveu no comunicado.

Menos de uma hora depois, António Costa, em conferência de imprensa, anunciava que recusava a demissão anunciada e pedida "insistentemente" e por "unanimidade" por "comentadores e políticos". "Era mais fácil aceitar a demissão, mas em boa consciência não o podia aceitar", explicou. E elogiou o ministro: [A demissão] "trata-se de um gesto nobre que eu respeito, mas que em consciência não posso aceitar".

O primeiro-ministro sustentou toda a argumentação que João Galamba apresentou na conferência de imprensa no dia 29 de abril garantindo que confirmou "todos os factos" relatados pelo ministro das Infraestruturas. "Tenho confiança de ter acertado na minha decisão", afirmou Costa.

Marcelo Rebelo de Sousa, ainda decorria a demorada conferência de Costa, tornava claro, em comunicado que "discorda da posição" do primeiro-ministro "quanto à leitura política dos factos e quanto à percepção deles resultante por parte dos Portugueses, no que respeita ao prestígio das instituições que os regem".

Costa, minutos antes, explicava que ceder a "comentadores", "à opinião pública" era alinhar nos "populismos" garantido até que no caso da intervenção do SIS nada do que sabe - porque procurou informar-se de tudo, garantiu - significa que alguma coisa tenha sido feita "à margem da lei".

Marcelo tem a visão absolutamente contrária: "O Ministro das Infraestruturas apresentou hoje o seu pedido de demissão, invocando razões de peso relacionadas com a percepção dos cidadãos quanto às instituições políticas. O Primeiro-Ministro, a quem compete submeter esse pedido ao Presidente da República, entendeu não o fazer, por uma questão de consciência, apesar da situação que considerou deplorável. O Presidente da República, que não pode exonerar um membro do Governo sem ser por proposta do Primeiro-Ministro, discorda da posição deste quanto à leitura política dos factos e quanto à percepção deles resultante por parte dos Portugueses, no que respeita ao prestígio das instituições que os regem".

Antes da declaração de Costa não estava nos planos de Marcelo fazer qualquer comentário.

João Galamba, 29 de abril: "Reportei o facto [o alegado roubo] e disseram-me [refere-se à ministra da Justiça] que o meu gabinete devia comunicar estes factos àquelas duas autoridades [SIS e PJ], coisa que fizemos (...) E perante o facto de esse computador ter um amplo acervo de documentos classificados, a minha chefe de gabinete fez o que lhe competia. Reportou às autoridades competentes esse facto: foi roubado do Ministério das Infraestruturas um equipamento do Estado que contém documentos classificados e é meu dever reportar esse facto".

António Costa, 1 de maio: "O SIS não foi chamado a intervir. Há um roubo de um computador que tem documentação classificada, o gabinete do ministro fez o que lhe competia fazer, dar o alerta às autoridades e as autoridades agiram em conformidade. Não fui informado e não tinha de o ser, ninguém no Governo deu ordens ao SIS para fazer isto ou aquilo, o SIS agiu em função do alerta que recebeu e no quadro das suas competências legais."

Marcelo Rebelo de Sousa, 1 de maio: "Em determinados temas particularmente sensíveis o seu tratamento não é na praça pública, não é sob os holofotes da comunicação social. São tratados, vão sendo tratados até ao momento em que se vê que foram tratados (...) Aqui, tratando-se de uma matéria sensível, de relevância nacional, o tratamento tinha que ser discreto (...) as coisas sucedem, vão sucedendo e depois verifica-se que sucederam".

E o que sucedeu podia suceder? Fernando Negrão, deputado do PSD, magistrado judicial, antigo diretor da PJ, não tem dúvidas: "O SIS não tem competências de natureza policial. Procurar um objeto, seja ele o que for, mesmo que seja um computador com documentos confidenciais e com segredo de Estado, não pode ser o SIS (...) Se, de facto, nada foi pedido ao SIS há aqui um problema de coordenação e há um problema ainda mais grave: temos de perguntar ao SIS se acha que tem competências de natureza criminal (...) não podemos de maneira nenhuma estar a confundir competências entre órgãos de polícia criminal, como é a PJ, a PSP ou a GNR, e órgãos cuja função é a recolha e tratamento de informação".

O mesmo entende, Rui Pereira, ex-diretor do SIS, antigo ministro da Administração Interna: "O SIS é um serviço de informações."

Jorge Bacelar Gouveia, constitucionalista e antigo presidente ao Conselho de Fiscalização das secretas, é igualmente claro: "Isto não é um assunto do SIS (...) Recuperar um computador, mesmo que para evitar uma violação de um segredo de Estado, é uma atividade policial, não é uma atividade dos serviços de informações (...) não podem exercer poderes, praticar atos ou desenvolver atividades do âmbito ou competência específica dos tribunais ou das entidades com funções policiais (...) Um chefe de gabinete nunca poderia chamar o SIS, não é competente para isso."

Ao contrário de Costa que diz não ter sido "informado e [que] não tinha de o ser" e que "ninguém no Governo deu ordens ao SIS para fazer isto ou aquilo, o SIS agiu em função do alerta que recebeu e no quadro das suas competências legais", Jorge Bacelar Gouveia sustenta que só ao primeiro-ministro cabe "controlar, tutelar e orientar a ação dos serviços de informações" até porque esta competência que não está delegada. Ou seja: "Um chefe de gabinete nunca poderia chamar o SIS."

Ou, como diz o BE no requerimento que pede a audição urgente da secretária-geral do Serviço de Informações da República Portuguesa (SIRP): "O Serviço de Informações de Segurança [SIS] não é um órgão de polícia criminal, não tem poder nem competência para proceder a rusgas ou a buscas domiciliárias e está vinculado à lei e à Constituição da República Portuguesa."

BE, PSD, PAN e LIVRE requereram a audição urgente da secretária-geral do SIRP, com os três últimos partidos a pedir também para ouvir o diretor do SIS sobre o envolvimento dos serviços de informação na recuperação do computador atribuído ao ex-adjunto do ministro das Infraestruturas.

O PAN quer ainda esclarecimentos do ministro das Infraestruturas, João Galamba, e do seu ex-adjunto Frederico Pinheiro.

Já o Chega requereu a audição do Conselho de Fiscalização do SIRP, do diretor do SIS, dos ministros das Infraestruturas e da Justiça.

O Conselho de Fiscalização do Sistema de Informações da República Portuguesa esclareceu esta terça-feira que por sua própria iniciativa pediu informações sobre a intervenção do SIS no caso da recuperação do computador atribuído a um ex-adjunto governamental com informação classificada.

Ao que o DN soube na segunda-feira, o SIS já terá prestado esclarecimentos sobre o que se passou, por iniciativa própria, ao Conselho de Fiscalização.

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