Caso de interdição?
O candidato Jair Bolsonaro foi uma mentira em três atos.
Por entender que precisava dos barões do dinheiro travestiu-se de neoliberal, chamando para a sua equipa o ministro da economia taxador de desempregados Paulo Guedes, e jurando amor eterno à Bolsa de Valores.
Logo ele, fã assumido do mais estatizante dos regimes, a ditadura militar; logo ele, que só soube ganhar a vida nas duas mais ociosas atividades do estado, o exército, de onde acabou reformado à força, e o parlamento, onde em cerca de 30 anos produziu dois insignificantes projetos de lei.
Por outro lado, por entender que para alavancar o seu projeto de poder precisava de apoio espiritual, disfarçou-se de evangélico, fazendo-se batizar nas águas do Rio Jordão pelo pastor Everaldo, presidente do PSC, o oitavo dos nove partidos em que militou.
Logo ele, católico assumido que até à campanha eleitoral era conhecido por citar mais pensamentos de Brilhante Ustra, o torturador-mor da ditadura militar, passaria a abastecer os seus discursos de versículos do evangelho para seduzir o ouvido neopentecostal.
Finalmente, por entender que o espírito da época era a execração da política à antiga, mascarou-se de paladino da luta contra a corrupção, convidando para o seu governo Sergio Moro, o juiz que condenara o seu principal opositor um ano antes.
Logo ele, o tal político recordista de ociosidade, que trocou de partido nove vezes e enfiou os três filhos (vem aí mais um) e os sobrinhos e os ex-sogros e os ex-cunhados como membros fantasmas dos seus gabinetes, a fazer-se passar por representante da "neopolítica".
Não: Bolsonaro não é neoliberal, nem sequer neopentecostal e muito menos "neopolítico".
Ora, para desenvolver um candidato baseado em três mentiras originais, a sua campanha teve, coerentemente, de armar a mais poderosa fábrica de fake news da história da democracia brasileira para se sustentar.
Fernando Haddad, o rival na segunda volta, foi acusado de enquanto ministro da educação de Lula ter instituído um kit gay nas escolas e de comercializar as célebres "mamadeiras de piroca" (biberons com formato de pénis), talvez o símbolo maior da tragicomédia em que o Brasil se tornou.
Mas mais perigoso é mentir já eleito e fazer da aldrabice política de estado. E Bolsonaro tem-no feito a um ritmo quase patológico.
Ao ponto de Miguel Reale Junior, subscritor do impeachment de Dilma Rousseff, o chamar de "BolsoNero" e falar em "interdição".
E Gustavo Bebeanno, um ex-aliado que, de tão íntimo, discutia com ele o futuro do país de cuecas em camas de hotel segundo o próprio, apontar para "a necessidade de tratamento psiquiátrico" e "inimputabilidade".
Exemplo: para divertimento mundial, Bolsonaro atribuiu as queimadas da Amazónia ao ator Leo DiCaprio; o menos divertido é que, por causa disso, polícias do Pará prenderam mesmo quatro membros de uma ONG, num processo kafkiano em que uma conversa gravada entre os ativistas no qual um diz ao outro "vamos queimar um", gíria para se fumar um cigarro de maconha, se tornou prova de fogo posto.
Mas o exemplo mais recente de que a mentira entrou num novo patamar e que Reale e Bebeanno talvez tenham mesmo razão surgiu numa manhã como as outras, a de 11 de dezembro. Na ocasião, o presidente divulgou à imprensa que havia realizado exames médicos: "Eu tenho pele clara, pesquei muito na vida. Então, a possibilidade de cancro de pele existe".
Os jornais, logicamente, citaram-no nas edições do dia 12 com o destaque que uma eventual doença grave num presidente da República em funções merece.
Pois, numa live de facebook de dia 13, Bolsonaro disse o seguinte: "Teve uma fake news também de que eu estaria com cancro. É mentira atrás de mentira. Infelizmente, grande parte da nossa media presta-se a isso".
E os espetadores dessa live, os mesmos que acreditam que Bolsonaro é neoliberal, neopentecostal e neopolítico, que não têm dúvidas do projeto da "mamadeira de piroca" de Haddad e juram ter visto DiCaprio de isqueiro em punho na Amazónia, ficaram indignados com essa tal de imprensa.