Carta aberta ao meu Centro de Saúde (II) – Transformação imperfeita.

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Meu caro Centro de Saúde,

Lembras-te seguramente da sofrida "involução burocrática", que se seguiu ao mal conduzido processo de integração dos "centros de saúde de primeira geração" com os postos médicos dos serviços médico-sociais da Previdência, no princípio dos anos 80.

Não se podia continuar assim. Era preciso fazer alguma coisa.

Alguma coisa que assegurasse o acesso das pessoas aos cuidados de saúde de que necessitavam. Ao mesmo tempo que se apostava significativamente na satisfação dos profissionais que aí trabalhavam.

Estávamos na segunda metade dos anos 90, e a Ministra da Saúde era Maria de Belém Roseira.

As respostas então encontradas para a tua situação podem resumir-se em algumas das suas principais dimensões:

- A criação de "unidades funcionais" com autonomia para se organizarem e inovar, enquadradas por contratos-programa. Nesta perspetiva, a primeira "unidade de saúde familiar" foi inaugurada em Fernão Ferro, no Seixal, em 1996, pelo então primeiro-ministro. Previu-se, também, um desenvolvimento similar no sistema hospitalar, com a criação de "centros de responsabilidade integrados" (1999).

- Era essencial substituir a "administração burocrática", por um processo de contratualização do desempenho. Para isso começaram a ser instituídas "agências de contratualização", que foram estendidas a todas as regiões do país (1997).

- Adotou-se, e pôs-se em prática, um regime remuneratório (experimental) (1998), com uma parte fixa e outra parte variável, diferenciada de acordo com o desempenho, pese as fortes reservas por parte da Administração Pública e das Finanças. Apesar de ainda limitada a uma só profissão, esta "rutura" original constituiu um passo fundamental para este movimento reformista.

- Foi institucionalizado o apoio à garantia de qualidade dos cuidados de saúde, pela criação do Instituto de Qualidade em Saúde (1999) - a ênfase posta, nesta reforma, no acesso aos cuidados de saúde, não deveria descuidar a importância de investir também na sua qualidade.

- Como parte das medidas necessárias para uma utilização mais inteligente dos serviços de urgência dos hospitais, contrariando os pedidos para a colocação de médicos de família naquelas urgências, criou-se o centro de atendimento telefónico, hoje denominado SNS 24.

- O governo publicou legislação destinada à reorganização dos centros de saúde para acolher as inovações acima enumeradas - os "centros de saúde de 3ª geração" (1999). Previa-se a constituição de unidades funcionais, como as de saúde familiar, cuidados na comunidade, saúde pública e de "outras especialidades". Para além da administração, incluíam uma direção e um conselho técnico de coordenação. O centro de saúde era dotado de autonomia administrativa e financeira. Para esse fim, em certas circunstâncias, os centros de saúde podiam associar-se para assegurar serviços de utilização comum.

- Finalmente, elaborou-se uma estratégia de saúde para o país que desse sentido e propósito ao conjunto de reformas iniciadas: "Saúde um Compromisso: Uma estratégia de Saúde para o virar do Século (1998-2002)".

Todo este processo foi interrompido em finais do ano de 1999, sob a égide do mesmo primeiro-ministro que tinha presidido ao governo que o tinha iniciado. Muito provavelmente, não tinha percebido nem porque se tinha iniciado, nem porque foi abandonado. O abandono continuou com o governo seguinte.

Perderam-se, desnecessariamente, cerca de 6 anos para o desenvolvimento dos cuidados de saúde primários no país - até António Correia de Campos como Ministro da Saúde (2005).

O movimento reformista nos cuidados de saúde primários foi adotado, aprofundado e estendido, progressivamente, a grande parte do país, graças à ação dedicada e esclarecida de uma Equipa de Missão, constituída para esse efeito.

Entre muitos outros aspetos relevantes, interessa particularmente referir aqui a intenção de reforçar a "governação/direção clínica e de saúde" nos centros de saúde. Com esta pretendia-se favorecer o teu funcionamento como um todo, buscando a melhoria dos níveis de saúde na comunidade que servias, equilibrando a tendência centrífuga das unidades funcionais contratualizadas.

No entanto, nos anos que se seguiram, sem a necessária introdução de novos modelos e instrumentos de governação para fazer face à crescente complexidade das sociedades do século XXI e aos seus sistemas de saúde, a reforma foi sofrendo uma erosão crescente nos seus principais componentes.

E a tua existência e a "ideia de centro de saúde" não escaparam a essa erosão.

- As tuas unidades funcionais não tiveram todas o mesmo tratamento e desenvolvimento. A falta de uma conceção partilhada sobre o desempenho esperado do SNS por parte dos governos, durante décadas, impediu a rápida evolução para unidades funcionais contratualizadas e remuneradas com base no seu desempenho. Os Centros de Responsabilidade Integrados apareceram como fenómenos esporádicos, não como elementos-chave de uma reforma hospitalar.

- A contratualização do desempenho é um processo complexo, que necessita de análise - quantitativa e qualitativa - gestão, correções e reajustamentos contínuos. E também autonomia técnica no seu exercício. Não se desenvolvendo estas capacidades, a contratualização, com o passar do tempo, tende a deixar de ser um instrumento diferenciador que incentiva a melhoria contínua dos cuidados. Passa, simplesmente, a corresponder a aumentos salariais para quase todos. Aumentos salariais que são desejáveis, mas não exatamente desta forma.

- O Instituto da Qualidade em Saúde foi descontinuado.

- Foste agrupado ("desaparecido") em descomunais ACeS (Agrupamentos de Centros de Saúde), sem sentido. A título exemplificativo: um mesmo ACeS engloba núcleos urbanos extensos, como por exemplo Oeiras, Paço de Arcos, Algés, Alcântara e Campo de Ourique (em Lisboa); um outro, como o do Baixo Mondego, inclui 53 unidades funcionais, dispersas geograficamente por 9 concelhos; no interior do país, como em Trás-os-Montes, um ACeS abrange todos os concelhos de um distrito... e assim por diante. Nesta escala, perde-se o sentido de proximidade, desvanece-se a própria ideia de "centro de saúde" e da sua comunidade. E a governação clínica e de saúde deixa de ser efetivamente viável, desaparecendo, assim, o seu efeito integrador em relação às suas unidades funcionais. Apaga-se, também, o foco na qualidade dos cuidados e nos resultados do conjunto das tuas ações na comunidade que serves.

E assim chegamos à atualidade. Com múltiplos problemas que se foram acumulando, por resolver.

Às disfunções nos centros de saúde juntaram-se as dos hospitais, a falta de atenção às necessidade e expetativas dos profissionais de saúde, a crescente dificuldade de acesso ao SNS, a incapacidade de pôr a funcionar sistemas de informação que facilitam a integração e continuidade cuidados, de importância crítica para cuidar de populações mais envelhecidas.

É preciso atuar decisivamente. Apreender com a experiência passada, hoje bem documentada. Sabendo que as soluções não são de efeito imediato, mas que postas em marcha são suscetíveis de reacender a confiança no futuro do SNS.

Retomar a ideia do centro de saúde terá de estar no "centro de gravidade" das transformações necessárias.

Continua: Carta aberta ao meu Centro de Saúde (II) - E agora?

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