Carta aberta ao meu Centro de Saúde (I) – a ideia do centro de saúde

Publicado a
Atualizado a

Meu caro Centro de Saúde,

Infelizmente, não posso dizer que espero encontrar-te bem. Tememos que a própria ideia de "centro de saúde", essencial para a configuração de um Serviço Nacional de Saúde de qualidade, esteja em processo de dissolução.

Temos de recuperar a ideia.

Precisamos de conversar.

Dificilmente recordarás os primeiros passos da tua infância, e aí talvez te possa ajudar. Já há muito tempo que se observa que as pessoas, precisando de desenvolver capacidades para prosseguir o dia-a-dia do seu projeto de vida na comunidade, necessitam do acompanhamento e apoio de serviços de saúde. Umas ocasionalmente, outras mais frequentemente. O "centro de saúde" foi pensado nessa perspetiva. Como uma entidade organizacional de proximidade que coordena os recursos e as competências necessárias para prestar esse acompanhamento e apoio. Por vezes, contudo, algumas pessoas, pela natureza da sua situação de saúde, são obrigadas a modificar substancialmente ou mesmo a suspender, mais ou menos extensamente, esse dia-dia na comunidade, a favor de um "plano de cuidados de saúde", capaz de responder efetivamente ao problema em causa, em termos diagnósticos, terapêuticos e assistenciais - recorrendo a hospitais e a aquilo que mais recentemente se designa como "cuidados continuados.

É esta, essencialmente, a lógica que deve informar a organização dos serviços de saúde no país.

Em Portugal, depois de várias tentativas infrutíferas, a criação de uma rede de centros de saúde no país foi decidida em 1971, pela visão e insistência de três personalidades de competências complementares - um político, um estudioso e um empreendedor: O Ministro Baltazar Rebelo de Sousa, político, o Secretário de Estado Francisco Gonçalves Ferreira, estudioso, e o Diretor-Geral-de Saúde Arnaldo Sampaio, empreendedor. Da natureza deste trio notável há que notar que dois deles foram progenitores de dois presidentes da República Portuguesa, Marcelo Rebelo de Sousa e Jorge Sampaio. O terceiro não teve filhos.

O desenvolvimento dos centros de saúde iniciou-se de facto no início da década de 70, com o entusiasmo de uma geração pioneira, mas com uma limitação importante. É que, ao contrário do que a legislação previa, não se conseguiu, no decurso dessa década, a integração dos serviços dependentes da Direção-Geral de Saúde com os cuidados curativos dos postos médicos das Caixas de Previdência. Como recordarás, na saúde, cumprir o que a lei institui tem sido frequentemente difícil!

Mas apesar dessa limitação, muito foi feito, durante este período, para dar corpo à ideia do "centro de saúde": conhecer as comunidades que servem e as pessoas que delas fazem parte; ouvir e compreender as suas dificuldades e aspirações, assim como os fatores que as determinam; promover comportamentos que melhoram a sua saúde e a dos outros; articular as múltiplas contribuições que terão de convergir para a proteção e promoção da saúde, fazendo-o em equipa pelo apreço do trabalho de uns e outros; aprender continuamente com os resultados da experiência. Não era uma edificação habitada por profissionais à espera dos seus utentes. Era uma organização que pensava e atuava para a melhorar a saúde de uma comunidade.

João dos Santos, pedopsiquiatra pioneiro, e muitos dos seus discípulos, compreenderam o desenvolvimento da criança no contexto da sua família, escola e bairro e desenvolveram práticas efetivas nessa perspetiva - dizia-nos que todos temos uma face (o que somos) e uma máscara (o que aparentamos ser), sendo que, no fundo, todos queremos ser como a nossa máscara. Por isso, será no espaço entre a face e máscara onde as "intervenções" verdadeiramente importantes terão de acontecer. E esta lição ia muito para além do indivíduo - era preciso juntar os múltiplos atores da comunidade e conseguir compromissos coletivos generosos (a máscara comum) e depois persistir na sua efetivação. Albino Aroso, outra personalidade extraordinária, ginecologista, obstetra e político afável e determinado, pressentiu, antes de outros, que a saúde das famílias beneficiaria muito de um processo de racionalização das intenções reprodutivas. E assim introduziu entre nós, nos centros de saúde, o "planeamento familiar" - não se tratava tanto de dar contracetivos, mas antes aprender a conversar com um casal sobre em que circunstâncias, e como queriam ou não constituir família. Levar o conhecimento às pessoas para que estas possam ter a vida que desejam.

Manuel Sá Marques, diabetologista, "médico do bairro", como por vezes se autointitulava, era humildemente sábio na partilha permanente da sua experiência. Tornava óbvio que, especialmente nas afeções de evolução prolongada, como a diabetes, era necessário criar as condições para acompanhar o percurso das pessoas, capacitá-las a decidir sobre aquilo que melhor permitiria evitar complicações indesejáveis da sua situação. Isso sem prejuízo da plena realização do seu projeto de vida num meio-ambiente social e cultural propício.

Todos eles, e muitos mais, contribuíram para configurar a cultura do centro de saúde, mas estes exemplos, apesar da sua importância, seriam insuficientes se não lhes acrescentarmos o papel fundamental da "enfermagem na comunidade". Ir lá. À casa das pessoas que precisavam, que deixaram de aparecer precisando. Lá onde havia casos de doenças transmissíveis preocupantes. Ir lá. Aos bairros mais desfavorecidos onde a luta diária pela sobrevivência desfocava outras necessidades óbvias de saúde individual e pública. Ir lá. À creche, à escola, às instituições para crianças inadaptadas, ou para os mais velhos menos protegidos. Ir lá, não ficar à espera. Militantemente, desafiando os limites dos nossos conhecimentos sobre como intervir efetivamente numa comunidade, digerindo insucessos e porfiando sempre. Aprendendo para ensinar. Escolhi quatro nomes, de entre os que conheci, para representar centenas de outros, deste pequeno-grande exército: Maria Alcina Fernandes, Isabel Azevedo Costa, Fernanda Dias e Maria Rosário Horta, cada uma com o seu estilo próprio.

Importa recordar, também, que o plano nacional de vacinação, muito bem lançado uns anos antes (em 1965) revelou-se um grande êxito na proteção das crianças (altamente cotado em termos de comparação internacional), graças à adesão das famílias e dos profissionais, em especial pediatras e enfermeiros.

Mas a ideia do centro de saúde precisava também de lideranças, de empreendedores públicos, médicos de Saúde Pública, que se atrevessem a organizá-lo, dando-lhe corpo. Homens como José Lopes Dias, que estimulava os mais jovens a aderir, como Cardoso Ferreira, que percorreu o país experimentando e inovando ou como Mário Pinho da Silva, que acabou por levar a ideia do centro de saúde português para a longínqua Macau, com um êxito de repercussões internacionais. E de Mário Moura, que explicava com inigualável paixão a importância do médico de família para o desenvolvimento do centro de saúde.

Com a criação do Serviço Nacional de Saúde, em 1979, e com a adoção da carreira do médico de família (a princípios da década de 80), iniciou-se uma nova fase na vida dos centros de saúde.

Mas o que se seguiu, não foi uma fase boa nem para os centros de saúde, nem para a medicina geral e familiar.

A explicação é relativamente simples.

Juntaram os muitos postos médicos da previdência, herdados dos antigos serviços médico-sociais de assistência corporativa e os centros de saúde dependentes da Direção Geral de Saúde (aquilo a que podemos chamar os "centros de saúde de 1ª geração") e chamaram a tudo aquilo "centros de saúde", independentemente da forma como funcionavam. Quisemos que não fosse assim - que os "postos médicos" passassem a centros de saúde de "segunda geração" quando preenchessem certos critérios de boas práticas no acesso e prestação de cuidados de saúde, assim como no trabalho na comunidade. Não foi assim.

No decurso de mais de uma década, foi-se configurando, com honrosas exceções, um edifício administrativo rígido, passivo, sem qualquer tipo de autonomia, que deixava à porta, em longas esperas aqueles que dele precisavam e que constrangia o espaço de realização profissional daqueles que nele trabalhavam.

Não se poderia continuar assim!

Continua: Carta aberta ao meu Centro de Saúde (II) - transformação imperfeita.

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt